Controle e Cerco da Pobreza


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30 anos da Chacina da Candelária: Impunidade e continuação marcam crime de Estado

por Ângelo de Carvalho

No dia 23 de julho de 1993, oito meninos de rua foram assassinados por um grupo de extermínio composto principalmente por policiais ou ex-policiais militares. O massacre ficou conhecido como a “Chacina da Candelária” e escancarou uma realidade há anos sofrida por jovens e crianças pobres nas ruas do Rio de Janeiro. Todo o episódio, desde a matança em si até a impunidade aos matadores, revelou a verdadeira face da chamada “redemocratização”, recheada de heranças do regime militar, e o caráter de classe do velho Estado brasileiro e suas instituições. Hoje, não só o massacre segue impune, mas é repetido recorrentemente.

A chacina ocorreu durante a noite, quando dezenas de meninos de rua do centro carioca dormiam nas redondezas da Igreja da Candelária. Os assassinos apareceram em dois carros, um Chevette e um táxi, ambos com placas cobertas, e dispararam desenfreadamente contra os rapazes. Oito meninos foram assassinados, todos com idade entre 19 e 11 anos. Seis deles não haviam nem completado 18 anos.

Dos alvejados, um sobreviveu: Wagner dos Santos, que voltaria a sofrer tentativa de assassinato no ano seguinte como forma de retaliação aos depoimentos prestados para identificação dos matadores. O papel de Wagner na investigação foi central. Foi seu depoimento que identificou diversos assassinos, apesar de o sistema judiciário brasileiro não ter condenado a maioria deles e ter concedido liberdade aos poucos que sofreram condenação.

Crime de Estado

As declarações de Wagner comprovaram o envolvimento de policiais militares organizados nos chamados “grupos de extermínio” na execução da chacina. Promovidos amplamente durante o regime militar, esses grupos abundavam (como ainda abundam) as ruas do Rio de Janeiro como complemento ao aparato de repressão contrainsurgente, com atuação destacada na repressão de grupos políticos democráticos e revolucionários e das massas empobrecidas, sobretudo os jovens de rua.

Nos idos da chacina, a atuação dos matadores ligados ao velho Estado era contundente. Além da atuação “regular” de repressão e genocídio das massas empobrecidas – permitida e impulsionada pelo velho Estado por meio impunidade aos matadores e sistemas de recompensa internos das polícias aos militares mais assassinos – os grupos de extermínio, compostos de celerados anticomunistas e órfãos do regime militar, que pensavam ter findado em 1985, ainda buscavam demarcar sua atuação na chamada “redemocratização”.

Para isso, buscavam desestabilizar ao máximo os mínimos reflexos democráticos prometidos (e na maioria das vezes, somente prometidos) por aquele processo. Sobretudo no RJ, a atuação destes grupos de extermínio miravam as políticas reformistas de extinção da Secretaria de Segurança Pública (subordinada ao Exército) pelo então governador Leonel Brizola e buscavam conduzir a um aumento das operações policiais implementadas, visando a manutenção da guerra civil reacionária implementada nas favelas e dirigida pela cúpula das Forças Armadas. A atuação desses grupos, tendo a Chacina da Candelária como ponto emblemático, ao mesmo tempo que minavam essas políticas, demonstravam o fracasso e fragilidade das promessas e do pacto de classes de 1988, deixando clara a continuação do terrorismo e crimes de Estado contra as massas populares brasileiras. Afinal de contas, aquele regime militar fascista iniciado 64 não acabou, apenas mudou de forma.

Impunidade

Desnudando o envolvimento das polícias e grupos de extermínio com a Chacina, os depoimentos de Wagner levaram à identificação de nove indivíduos, sendo oito deles policiais ou ex-policiais. Eram eles os policiais Nelson Oliveira dos Santos, Marco Aurélio Dias de Alcântara, Arlindo Afonso Lisboa, Cláudio dos Santos, Marcelo Cortes, Marcus Vinicius Emmanuel Borges e Carlos Jorge Liaffa, além do ex-policial Maurício da Conceição e o serralheiro Jurandir Gomes França.

Três deles, Jurandir França, Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes, foram inocentados. De forma escancarada e discrepante com as vítimas da violência policial, os policiais Santos e Cortes ainda foram indenizados pelo Estado pela acusação!

Carlos Jorge Liaffa não foi indiciado, mesmo com a identificação de Wagner Santos e a conclusão da perícia de que uma das balas foi disparada pela arma de seu padrasto. Arlindo Afonso foi condenado a somente dois anos de prisão, apesar de uma arma usada no crime ter sido encontrada com o policial. Nelson Santos, Marco Aurélio e Marcus Vinícius foram condenados há mais de 200 anos de prisão cada um, mas já estão em liberdade.

Discrepância

As decisões do sistema judiciário em torno da Chacina da Candelária desnudam o caráter de classe do velho Estado brasileiro e suas instituições. Enquanto os identificados como matadores foram presenteados com indenizações, milhares de mães que têm seus filhos assassinados pelas operações policiais cotidianas no Brasil aguardam por anos por compensações à família e punições aos assassinos de seus filhos. Para ficar somente em um exemplo, a família do operário da construção civil Amarildo Dias de Souza, morto há dez anos atrás, ainda aguarda o pagamento das indenizações e a condenação dos policiais envolvidos no sequestro e execução do trabalhador.

Quanto aos indultos concedidos aos matadores condenados, é contrastante com a realidade de milhares de jovens presos arbitrariamente que fenecem nos presídios enquanto aguardam o trâmite de processos sem prova ou que sequer foram julgados.

Continuação

A Chacina da Candelária está longe de ser capítulo único na história recente das metrópoles brasileiras. Na verdade, o macabro episódio reforça que, desde sempre, o velho Estado brasileiro burocrático-latifundiário sustentou-se sobre o genocídio sistemático das massas populares, destinado ao controle e cerco da pobreza e prevenção da revolta dessas massas pelos direitos nunca garantidos.

Hoje, a mesma realidade prossegue, sem tirar nem pôr. Nas favelas cariocas, chacinas ainda maiores se repetem. Entre 2021 e 2023, 81 jovens foram assassinados em quatro chacinas diferentes realizadas em favelas do Rio de Janeiro. Da mesma forma que os matadores da Candelária foram presenteados, a Polícia Militar também foi recompensada pelas chacinas. Neste ano, o governo federal anunciou novos armamentos, viaturas e equipamentos de monitoramento à Polícia Militar do Rio de Janeiro, em contrato com o governador estadual genocida Cláudio Castro.

{ A Nova Democracia }

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