Ou a não revolução…

11-06-2016k

O Titanic da cibercultura

por Diego Viana
[Valor Online]

O sociólogo francês Dominique Wolton tem o hábito de nadar contra a corrente. Quando a regra entre teóricos da comunicação, inspirados sobretudo pela célebre Escola de Frankfurt, eram os ataques generalizados à indústria cultural, televisão em particular, Wolton buscou demonstrar que justamente esses veículos de comunicação que marcaram o século XX proporcionavam um meio de interação para as sociedades nacionais. Hoje, porém, a internet e as redes sociais parecem, aos olhos da maioria dos analistas, oferecer o caminho para aperfeiçoar a comunicação tanto ao redor do mundo quanto em pequenas comunidades localizadas. Mas o sociólogo discorda profundamente, enxergando nas tecnologias contemporâneas de comunicação uma ilusão de contato que, na verdade, fecha cada um sobre si mesmo. Para Wolton, em resumo, a internet é “o Titanic da cibercultura”.

Especialista em comunicação e fundador do primeiro laboratório dedicado ao tema no Centro Nacional de Pesquisa Científica francês (CNRS) – o Instituto de Ciências da Comunicação -, o sociólogo rejeita a associação imediata das noções de comunicação e informação. A comunicação, para ele, envolve relações entre pessoas, e por isso tem implicações políticas, sociais e culturais que vão muito além da informação.

Seu livro mais recente, “Informar Não É Comunicar” (Sulina), trata dessas questões centrais da “era da informação”. O problema da internet, na concepção de Wolton, é que se trata de uma ferramenta alvo de uma idolatria até então não verificada em relação a nenhuma tecnologia de comunicação. Enquanto a televisão e o rádio foram sempre encarados como instrumentos nas mãos de grupos poderosos, sejam Estados ou corporações multinacionais, ninguém é capaz de enxergar por trás da internet a atuação dessas mesmas entidades.

“Fizeram da internet uma panaceia. Criou-se essa ilusão de que ela seria portadora de liberdade, criatividade, proximidade para todos. Nunca é dito nada de negativo sobre a internet. Quando alguém ousa lançar uma ressalva, é logo tachado de reacionário, antiquado e assim por diante”, afirma Dominique Wolton, durante entrevista concedida em São Paulo.

O que cega as pessoas ao redor do mundo para o aspecto não tão revolucionário da internet – aquilo que Wolton denomina a “não revolução da cibercultura” – é uma “ideologia técnica” que vem ganhando terreno sobretudo nos últimos 30 anos. Por meio dessa ideologia, aflora uma convicção de que a evolução do desempenho dos chips e aparelhos associados, como telefones, celulares, computadores, cartões e quetais, é fonte de ganhos na vida social e na capacidade comunicativa de todos.

Mas essa convicção, argumenta Wolton, é ingênua e equivocada. A potência técnica traz mais dados, mais acessos, mais contatos. Mas os dados não são conhecimentos, os acessos não são entradas e os contatos não são comunicação. Para demonstrar sua tese, o sociólogo propõe uma grande greve tecnológica: abdicar temporariamente dos e-mails, dos telefones celulares e, “sobretudo”, das fotografias com aparelhos digitais. Uma volta aos filmes fotográficos, exemplifica Wolton, obrigaria o fotógrafo – principalmente o amador – a enxergar o valor de cada imagem que faça, porque ela tem um preço e a quantidade é bastante limitada. Seria necessário olhar antes de apertar o botão do obturador: o olhar é comunicação, o botão não é.

Nesse sentido, o sociólogo descreve o universo da internet no livro “Internet, e Depois?” (Sulina) como ao mesmo tempo o auge e a sepultura dessa ideologia técnica. Por que sepultura? Porque “essa onipotência que se tem enxergado na internet, a partir de um certo ponto, terá de refluir necessariamente. Jamais voltaremos a ter uma ideia tão poderosa da ideologia técnica, ao menos não no campo da tecnologia de comunicação. São os excessos da ideologia tecnológica que a tornam insustentável em seu estado atual de euforia”.

A briga de Wolton não é com a internet em si, naturalmente, mas com a concepção de globalização que ela carrega consigo. Em um artigo, ele escreve que “mesmo se a informação dá a volta ao mundo, é em menos de 100 quilômetros que a realidade muda”. Com isso, a circulação descontrolada de informações por meio dos cabos e satélites da rede mundial acaba enfraquecendo a possibilidade real que as pessoas têm de agir. E essa possibilidade é a ação local, por meio da comunicação entre gente que se conhece e tem uma base comum de cultura histórica, linguística e social. Confrontado com o mantra da modernidade cibernética, o “pense global, aja local”, Wolton deixa abertas as possibilidades. “O que temo é que a visão menos otimista, em que se perde com a globalização a própria ideia de globalizar, impeça que acreditemos na possibilidade de agir localmente”.

Trata-se de verificar se a velocidade da globalização, que se manifesta numa enxurrada de dados e informações capaz de soterrar uma pessoa, permite às populações desenvolver uma compreensão própria do mundo ou não. Essa é a vantagem da televisão, aos olhos de Wolton.

No tempo em que as sociedades dependiam dela para se informar, por mais que as notícias fossem manipuladas e influenciadas por interesses econômicos e políticos, havia uma base comum a partir da qual cada um poderia tirar suas conclusões para, em seguida, discutir com os vizinhos. Havia espaço para a unidade cultural, mas também para o dissenso. Na cultura técnica, cujo apogeu é a internet, segundo Wolton, as sociedades abdicaram dessa base comum e cada um guarda suas convicções em isolamento, porque recebe apenas as informações que deseja, quando e como deseja.

Mesmo assim, não se pode dizer que a internet esteja mais livre das influências políticas e econômicas que eram tão claras nos grandes meios de comunicação de massa – jornais, internet, rádio. “A circulação da informação na internet já é também manipulada, como sempre foi, por interesses poderosos, econômicos e políticos. As questões com que vai se confrontar são as mesmas que já enfrentaram a televisão e o rádio”.

Wolton ressalta que os lados político e econômico do poder são indissociáveis – “quando agem forças econômicas também agem forças políticas, e quando agem forças políticas também são forças econômicas”. Mas observa que um poder econômico absoluto, ou seja, a dominação de um mercado, é concebível, mas um poder político absoluto sobre a comunicação fica, se tanto, no campo do potencial. “Os monopólios não podem fazer tudo o que querem. Eles frequentemente creem que podem controlar o país porque puxam as cordinhas, mas isso não é verdade. As pessoas são cada vez mais independentes do que dizemos a elas. Não basta ter duas rádios, três canais de televisão e uma infinidade de jornais para controlar o público”.

Se a cultura da internet é uma das faces da globalização, aponta Wolton, então ela deve estar também sujeita às mesmas forças e aos mesmos problemas da globalização como um todo. O Brasil é um grande exemplo dos conflitos que podem surgir de determinadas tendências da globalização – aquelas que isolam, em vez de aproximar. No mundo todo, é possível observar uma expansão das iniciativas que erguem muros entre a identidade (o “nós”) e a diferença (“os outros”). Na própria França de Wolton, o governo Sarkozy endureceu progressivamente a política de imigração, até o ápice que foi a recente expulsão de ciganos do país.

Dois outros exemplos são os muros erguidos nas fronteiras dos Estados Unidos com o México e de Israel com a Palestina, que revelam fisicamente a vontade de marcar um território e um universo de exclusão da alteridade. Finalmente, o ataque de militantes terroristas no Iraque a igrejas cristãs coptas do país revela o nível de violência a que pode chegar uma globalização que sublinha as identidades e, com elas, as diferenças.

O que tem o caso brasileiro de especial? Para Wolton, o país tem a tradição de ser a terra onde pode haver comunicação entre diferentes etnias, diferentes religiões, diferentes classes sociais. Essa comunicação não exclui, naturalmente, a existência dolorosa da dominação, da violência, da segregação e da injustiça. Mas os espaços de encontro, de contato e de confronto sempre existiram e obrigaram a que se estabelecessem formas de comunicação. Por mais desigual que fosse essa comunicação, ela sempre pareceu, aos olhos de Wolton, mais democrática do que a existente na Europa e em quase qualquer outro lugar do mundo.

Mesmo assim, o Brasil não escapa “a essa tendência à segmentação e ao comunitarismo através da segurança, de tal maneira que os ricos fiquem juntos, os pobres também, cada um em seu canto”. Essa tendência se manifesta nas grandes cidades do país por meio de carros blindados, cercas elétricas e seguranças armados. O perigo é a formação de uma sociedade “em dois tempos”, com duas velocidades. Um país dividido não geograficamente, como se chegou a cogitar depois das últimas eleições, mas socialmente e comunicativamente. Em outras palavras, “o multiculturalismo brasileiro talvez esteja diante de uma ‘escola de realidade’. Ou bem o país resiste a essa luta ferrenha pela segurança ou entra numa estrutura de uns contra os outros, e nesse caso é toda a unidade nacional que é posta em risco. Essa unidade é vital, mas muito frágil”, adverte o sociólogo.

É preciso achar uma saída para essa globalização que desumaniza e bloqueia toda possibilidade de comunicação verdadeira. Wolton estima, em “É Preciso Salvar a Comunicação” (Paulus, 2006), que os conceitos de informação e comunicação só poderão se reconciliar numa outra onda de globalização, em que as populações se darão conta da necessidade de voltar a comunicar. Há duas maneiras de isso acontecer. A otimista seria uma ação política de regulamentação e, em particular, de desconcentração do poder econômico e político das mídias.

Mas se essa ação política não ocorrer – e Wolton não a vê ocorrendo -, será preciso encontrar uma saída pela arte. “Não dá para aniquilar completamente a criatividade e a comunicação do homem. Um dia, haverá um poeta, um cantor, um filósofo, alguém que diga: ‘Chega, basta!’. Enfim, qualquer coisa, um homem ou uma mulher perfeitamente comum”. Porém, se o grande sofrimento de todos os poetas raramente reverbera, o que se vê atualmente não permite imaginar um tal engajamento. “Por enquanto, as pessoas parecem estar mesmo é fascinadas. Elas não se dão conta de que os simulacros de comunicação não servem para nada”.

{ Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação – FNDC }

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.