Não basta um telefone só para ligar, offline, saberá do ‘Pokémon Go’. Em textos que acompanham o que se supõe vácuo da campanha de divulgação, analíticos ou serviços publicitários. O certo é que saberá da existência da mais recente avalanche transnacional.
Ao juntar as peças, ou os rastros, remontou aos ’90.
Ouvira, por detrás dos ombros, alguém que provavelmente se dirigia como a um animal doméstico, embora o lugar não comportasse. Por minúsculo que fosse o mascote. “Oh, é a terceira vez que pediu comida, que maldade, peraí que já vamos para casa.”
Era o cartão de visita do à época tão falado ‘tamagotchi’. À imagem e semelhança de um relógio digital, de cores fortes e sob tratamento carinhoso controlado ao ponto de parar conversa e estudo por causa do bichinho gráfico oriental. Pokémon nineties.
Os atuais barulhinhos de bolhas, assovios, continuam a disciplina, o controle, a mescla que de fato faz da pessoa física ao lado uma peça coadjuvante. Há bastante predisposição à padronização. E a vida, segundo alertam, é um jogo. (Ricardo S.)
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Pokémon Go e a sociedade de controle
por Cassiano Terra Rodrigues
Num texto chamado “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, Gilles Deleuze examina como estamos passando das sociedades disciplinares (aquelas estudadas por Michel Foucault) para sociedades de controle. Já no começo dos anos de 1990, antes, portanto, da Internet tornar-se hegemônica, Deleuze já alertava: “por toda parte o surf já substituiu os antigos esportes”. O que isso quer dizer? Responder essa pergunta é responder outra: o que significa dizer que vivemos em sociedades de controle?
As nossas sociedades contemporâneas já não são apenas disciplinares, e também não vivemos plenamente em sociedades de controle. Talvez vivamos um entremeio entre disciplinamento e controle, um nem bem aquilo ao mesmo tempo de quase lá. Vejamos.
Um aspecto importante das sociedades de controle é a ilusão da liberdade, quer dizer, é permitido fazermos tudo ou quase tudo que quisermos. Escolas e fábricas, por exemplo, já não se organizam como estruturas tão rígidas como nos séculos XIX e XX. De fato, alguma liberdade conquistamos. Hoje é possível estudar online pela Internet e trabalhar em casa, pelo computador.
Mas toda liberdade vem junto com alguma responsabilidade. Esse é um ponto que não podemos ignorar: a “liberdade” e a “responsabilidade” que ganhamos parecem ser mais formas de opressão do que de emancipação da vida. Trabalhar em casa é algo que pode ser muito bom, mas exige de nós uma disciplina que vai muito além de horários e tarefas de escritório. Responder aos emails de casa significa sim que nos livramos do espaço delimitado de trabalho, mas também que temos de responder em tempo e que as exigências do trabalho invadiram todo nosso tempo e nosso espaço particular – antigamente eram apenas telefones, depois vieram os bips, daí chegaram os emails e agora com os smartphones ninguém mais se surpreende em responder às convocatórias às 21h00, pois estamos permanentemente “conectados”, “ligados”, “24/7”, estamos “on(line)” até quando estamos “off(line)”, pois os perfis nas redes sociais e nos portais institucionais nunca dormem (dormimos?).
Mais de um autor contemporâneo já denunciou: perdemos nosso tempo “livre”, aquele tempo que tínhamos fora do alcance dos tentáculos do poder. Conectados o tempo todo, não há mais nem tempo nem lugar fora de alcance de um poder cujo centro não é identificável porque é onipresente. Se as sociedades disciplinares exerciam um poder opressor e sufocante sobre as pessoas, parece que ainda havia nelas uma sobra só nossa: terminadas as aulas, o tempo é meu, ao sair da fábrica, faço o que bem entender, ao menos até voltar amanhã para o próximo turno.
Já as nossas sociedades contemporâneas inventaram formas de dominação consentida e lúdica que disfarçam o fato de que, na verdade, todo nosso tempo e todos os lugares em que estamos não nos pertencem. A febre do Pokémon Go é o mais recente exemplo disso: embora a sensação seja de aumento de liberdade, o que realmente aumenta é o controle de nossas atividades.
O Pokémon Go não é um novo panóptico, aquele olho que tudo vigia lá de cima. O que temos agora é uma matriz difusa de informação coletando algoritmos ininterruptamente. Tudo é rastreado e codificado, tudo é interpretado em termos de padrões aceitáveis ou inaceitáveis: pesquise sobre algum produto ou mercadoria, visite certas páginas, digite certas palavras no buscador e, imediatamente, uma “lista de preferências” é produzida e propagandas começam a aparecer na tela.
Essa padronização é transposta a todos os níveis de sociabilidade: discursos, palavras específicas, são aceitáveis ou inaceitáveis de acordo com os padrões; condutas consideradas fora do padrão são execradas; mas o problema é com as palavras e as condutas em si ou com a incapacidade de pensar fora dos padrões? Com Pokémon Go, esse processo se radicaliza, mesmo que o software colete menos informações que o Facebook. Mais do que a vigília e a coleta de informações, os próprios movimentos corporais são decodificados e padronizados para transmitir informações precisas de tempo e lugar, não só onde, mas também como você se movimenta.
Obviamente, o efeito do panóptico é mantido: além do fato de estarmos sob vigilância, resta a sensação de que a vigilância é ostensiva, ininterrupta. A novidade, agora, é que mesmo essa sensação é desestimulada na sociedade de controle. Sabemos que somos rastreados, mas somos encorajados a não nos preocupar com isso – afinal, o que podemos fazer?
Quando se revela, essa naturalização da vigilância é sentida, primeiramente, como um escândalo, mas essa sensação logo dá lugar a um desânimo anestesiador: “É claro que prestam atenção a tudo que fazemos, mas não querem que pensemos sobre isso, querem, sim, que aceitemos o fato de que somos vigiados 24h por dia e deixemos passar. E deixamos, afinal”.
Entramos em verdadeiro torpor coletivo: “sabemos que há uma realidade, mas de certa maneira não temos consciência dela, no sentido de não nos preocuparmos com ela. Vez por outra, quando lembramos disso, é terrível. Daí preferirmos viver na Matrix”. Isso é evidente pelo descaso com as revelações de Edward Snowden e Julian Assange: “por que nos surpreenderíamos? Todo mundo já sabe mesmo, por que a preocupação?”
De fato, e infelizmente, o alerta não parece surtir muito efeito. No melhor dos mundos imagináveis, o máximo é lembrar que o Grande Irmão nos vigia – e é claro que nessa hora xingamos e esperneamos, gritando um “corta essa!” Além disso, de que adianta o Grande Irmão se não dermos bola a que ele nos espiona? Quer dizer, se não tivermos medo de sermos espionados, o Grande Irmão pode espiar o quanto quiser. Quem se lembra de 1984, de George Orwell, sabe que o medo de ser espionado tem de ser generalizado para funcionar.
No livro, não há apenas telas, mas também pôsteres com a cara do Grande Irmão em toda parte, lembrando sempre que ele está vigiando. Ninguém sabe ao certo se de fato existe alguém prestando atenção ou se tudo não passa de propaganda, e o poder do Partido, no livro, vem exatamente disso, da paranoia de que todas as nossas ações, por mais banais, podem estar sob as vistas de alguém. Nesse mundo, a consciência de estarmos sob vigilância ininterrupta não é mero reforço do poder, é seu sustentáculo.
Mas o nosso mundo é diferente: o que as revelações do Wikileaks fazem é explicitar que os meios e métodos de poder no nosso mundo não correspondem à distopia orwelliana. Hoje, em vez da paranoia da vigília eterna ser alimentada, ela é esvaziada. Somos desencorajados a nos importar com o fato de gradualmente perder privacidade. “Não se preocupe, afinal, você não está fazendo nada demais”. São nossas as palavras de ordem: “não ligue”, “deixa pra lá”, “nada demais”, “não seja chato”, “que é que tem?” Esse discurso fácil revela, portanto, duas coisas: primeiro, essa fala é nossa, mas não parecemos ter escuta alguma; segundo, somos todos convocados a crer que a preocupação não é nossa, mas é só dos outros, daqueles que estão fazendo algo de errado. Está instaurado o dualismo “nós” x “eles”.
E não só: somos convocados a colaborar com esse status quo, denunciando crimes às leis que proíbem o fumo, por exemplo. Já entendemos: todos aqueles que violarem as regras serão pegos. Mas é justamente essa ideia que precisamos questionar se quisermos desafiar de alguma forma as estruturas de poder, inclusive porque essa palavra de ordem é falaciosa, pois, definindo anteriormente uma classe, um padrão para as pessoas, dá como líquida e certa a existência dos membros dessa classe, de pessoas conformadas aos padrões aludidos – mas quais regras foram efetivamente violadas? Quem são os transgressores punidos? Sua existência é certa apenas pela existência da regra que virá a ser violada, é isso?
Para as sociedades de controle, manter a ilusão de liberdade é decisivo. Tanto mais decisivo passa a ser, assim, não ignorarmos onde e como a liberdade não é ilusória. Há certos parâmetros reconhecíveis para dizer e fazer o que quisermos (como sempre houve, aliás). Consequentemente, há certos limites reconhecíveis para o exercício da liberdade, com interdições bem claras – e talvez a única proibição não negociável seja para as posições e acusações mais radicais do nosso sistema político (intolerância extrema, convocatórias a atos “terroristas” e coisas do tipo – se bem que ultimamente, no Brasil, tudo parece permitido a quem é antipetista).
A maioria de nós, porém, está enquadrada nesses parâmetros sem sequer saber e, por isso, tem a sensação de total liberdade (de expressão, de modo de vida etc.). O importante, aqui, é compreender como o controle é exercido sobre nós exatamente porque nos deixa “fazer o que quisermos”. Isso acontece porque comportamentos socialmente proscritos são abertamente deslegitimados, considerados “criminosos” e via de regra como tão excepcionais que não vale a pena gastar tempo com eles.
Com isso, resulta que os igualamos a um negativo absoluto, como a classe de todas as pessoas absolutamente diferentes de “nós, os livres, os que não fazem nada de errado”, e isso significa que entre “nós” e “eles” há um abismo intransponível, sem nada de humanidade partilhada. Na verdade, qualquer reflexão sobre como superar esse abismo é desencojarada. Estamos sob controle na medida exata em que pensamos nos que estão subjugados aos efeitos do poder como alteridade absoluta – “eles, os inadequados, os chatos, os do contra são totalmente diferentes de nós, os que jogam Pokémon despreocupados, pois não estamos fazendo nada que já não se soubesse”.
Tudo isso significa que a tarefa política que nos está posta é muito maior do que queremos aceitar – e é inevitável. Deleuze, ao se perguntar sobre o futuro dos sindicatos e das tradicionais ligas de trabalhadores, reconhece que envelheceram mal: nascidas nas sociedades disciplinares, pensadas para responder aos desafios de outras formas de opressão, essas estruturas limitam-se, atualmente, ao direito de escolher como fazer concessões ao poder. O atual modelo de controle as tornou obsoletas (se alguém pensou aqui em CUTs e outros quetais, ou em partidos institucionalizados, ótimo).
Talvez esses instrumentos, se houver consciência das novas formas de exercício do poder, ainda possam nos servir, adaptados. Sempre é possível reagir e pressionar em sentido contrário, e eu sinceramente espero que essa pressão seja forte o suficiente para barrar, ao menos por um tempo, o avanço do controle sobre nós. Mas o fato bruto que temos de reconhecer é: precisamos de novos instrumentos, novas armas, novos conceitos. O próprio Deleuze não soube naquele momento dizer quais são essas novas armas, jogando a bola para as novas gerações. Mas ele deixou a pergunta: que alegrias podem ser capazes de mobilizar nosso desejo: as alegrias do marketing ou outras?
Uma das questões mais importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem “motivados”, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.
Ora, desejos são gerais, não precisam ser satisfeitos por nada específico, o que significa que está em nosso poder criar o que pode nos satisfazer, sem necessidade de aceitar passivamente as fórmulas prontas pelas quais pagamos um preço muitas vezes desconhecido. Pois então, o quanto de incerteza e dúvida ainda nos resta nesse mundo de respostas prontas? Que imprevistos e surpresas conseguiremos manter fora dos quadros do controle?
Dos anos de 1990 para cá, nós somos a nova geração. Esse questionamento é dirigido a nós, é nossa a liberdade e a responsabilidade de inventar as formas de resistência a esse poder controlador descentralizado e impessoal. Duvido que buscando Pokémons o faremos.
{ Correio da Cidadania }