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᎒ “João Brandão adere ao Punk”.
(por Ramiro Grossero, 2015)
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“(…) Um finge contestar, o outro contesta pra valer (…)”
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João Brandão adere ao Punk – Do conto ao curta.
“Ainda não cheguei a nenhuma conclusão, mas eu suspeito que o Punk veio a atender as necessidades do país na atual conjuntura.” (Trecho)
Quando em 2010 comecei a ler a coletânea, Um fio de prosa, Antologia de contos e crônicas para jovens (Editora Saraiva, 2004), a apreciação da leitura de renomados escritores que no livro antecedem ao conto “João Brandão adere ao Punk” do poeta Carlos Drummond de Andrade eram só um aperitivo diante da surpresa que tive ao saborear esta análise do Punk brasileiro, movimento que estava apenas começando no nosso país. A lucidez do poeta ao analisar o tema em página do “Jornal do Brasil” no ano de 1983, para o qual escrevia uma coluna semanal, é surpreendente pela sensibilidade com que, o também cronista, desenrola um diálogo com o personagem João Brandão a respeito do pouco compreendido e até mesmo mal falado movimento.
“Não importa que a sociedade como instrumento tolere os dois grupos, enquanto a indústria fabrica objetos sofisticados para o punk de salão, o que importa é a atitude deles perante a vida.” (Trecho)
Mas o que motivou Carlos Drummond a escrever sobre tal assunto? E como ele, que na época já havia passado dos oitenta anos de idade, pode com tamanha propriedade relatar as peculiaridades desta forma underground de vida? É comum o espanto, até mesmo dos mais aficionados no poeta, ao saber que ele escreveu a respeito do Punk e que foi a fundo ao relatar a respeito das tretas e idiossincrasias destes jovens que na maioria, oriundos da periferia, estavam ocupando os logradouros públicos com indumentárias e gestos pouco simpáticos à burguesia e aos simpatizantes do status quo.
“O punk maldito sabe que a moda passa e que ele vai ter que inventar outra forma de lazer que seja protesto ou outra forma de protesto que seja lazer…”. (Trecho)
Uma pista para compreendermos a sensibilidade que possibilitou esta análise está na própria pessoa de Drummond, que nasceu em Itabira-MG em 1902 e morreu no Rio de Janeiro-RJ em 1987, ou seja, pode ver o desenvolvimento do século XX, de suas esperanças e contradições passarem sob seus olhos atentos. Também na sua obra que nos mostra o perfil psicológico dele e da forma com que pensava sobre si e o mundo. A principio vale uma reflexão sobre a maneira que ele se coloca como pessoa e personagem nesta trama da vida. E é na própria poesia que se encontra a principal característica que pode nos esclarecer a identificação do poeta com as formas marginalizadas de pensamento. “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida” – Poema de sete faces, 1930.
“Eu simpatizo com o punk despojado, mau poeta e mau cantor, mas empolgado pela missão que se atribui de destruir a ordem conservadora através da música, do grito, do gesto e do anarquismo primário.” (Trecho)
Há no fragmento desta conhecida poesia a identificação com o pensamento marginal e também de uma autopercepção de que estava de certa forma nos caminhos incomuns dos pensamentos vigentes e aceitáveis da sociedade. O termo Gauche é a essência da personalidade do poeta e significa um sujeito desajustado e marginalizado. A mesma essência no qual veio a construir a personalidade do indivíduo punk e esta não é apenas uma coincidência e sim uma incidência na obra Drummoniana, que em 1943 no livro “A Rosa do Povo” expõe um pensamento niilista e é considerada como uma tradução de uma época sombria, que reflete um tempo, não só individual, mas coletivo no país e no mundo.
“Os punks trazem uma receita de aparência ingênua, mas que tem sentido, a postura punk, irreverente, descrente nos métodos e processos para nos livrar do abismo consagrado pelos grandes, tem sua razão de ser.” (Trecho)
Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, “tal tipo é um excêntrico (gauche); perde a noção das proporções e, colocando-se fora do ponto que lhe seria natural para manter-se em equilíbrio, termina comportando-se como um deslocado, como uma displaced person dentro do conjunto.” (Carlos Drummond de Andrade: Análise da Obra, 1980, p.38). Este displaced person, ou seja, uma pessoa sem lugar na geografia, é mais uma semelhança com a forma de pensar Punk, que ao negar as formas ideológicas do nacionalismo, do patriotismo e fazer pilhéria com o militarismo e com os símbolos que o cercam, não encontraram fronteiras culturais que pudessem interromper o fluxo de ideias subversivas que acompanhavam este movimento contracultural.
As enumerações das características implícitas e explícitas na obra e na personalidade do então octogenário Drummond para explicar o quanto “João Brandão adere ao Punk” é uma das mais completas análises que podem ser lidas dentro de um só conto a respeito não apenas da versão tupiniquim, mas também na universalidade do movimento ao redor do mundo, podem ser objetos de estudo e teses de diferentes estudiosos ou curiosos pelo assunto e amplo é o horizonte das possibilidades. Acredito que a capacidade do poeta de se sensibilizar com o objeto no qual se dispunha a estudar e escrever, principalmente quando havia uma identificação com sua pessoa, displaced person, e o envolvimento sincero principalmente com o próprio sentimento, são a chave para a compreensão da obra e não é à toa que esta narrativa causa tanta estranheza entre literatos e punks desavisados. Em entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto, Drummond declara: “Não tive a pretensão de fazer carreira literária. Tive apenas o desejo de exprimir minha emoções…; era mais um problema de ordem psicológica que de outra natureza.” (Dossiê Drummond, 1994, p.43).
“Para mim, Punk londrino quer dizer pum em português coloquial e é isso mesmo, um gás importuno, estrondoso no salão de festa, na rua, no gabinete da autoridade. É um som altamente contestatório das conveniências, preconceitos e ideias congeladas.” (Trecho).
O texto de Drummond pode ser considerado também uma das respostas, mesmo que ele não tenha tido tal intenção, a outra publicação em jornal da época. O jornalista Luiz Fernando Emediato, que um ano antes de “João Brandão adere ao Punk” havia escrito para o jornal “O Estado de São Paulo” com abordagens preconceituosas e sem conhecimento do então “Movimento Punk”. Emediato fazia uma série de reportagens para o jornal com o título de “Juventude Abandonada”. Um trecho da matéria falava sobre os punks: “(…) pálidos e que andam sempre armados. Com correntes, machados, às vezes até revólveres. Discípulos de Satã, o ídolo que veneram, eles não veem muita diferença entre Deus e o Diabo, entre Marx, Kennedy ou Hitler, entre Bem e Mal. Eles gostam de bater, só isso. Alguns, mais cruéis, roubam e espancam velhinhas – e acham graça nisso (…)”. Este texto na época rendeu protestos e direito de resposta no jornal e uma das réplicas mais conhecidas foi a do vocalista da banda “Inocentes”, Clemente, conhecido pela atuação no movimento e pela inteligência com que elaborava seu textos. Segundo Clemente, “foi a coisa mais estúpida que eu já vi escrita sobre Punk”.
Sobre o curta metragem. Como fizemos e o que sentimos.
Ao fim da leitura do conto e xerocadas as páginas deste “Fio de prosa” fui ao encontro do meu amigo Jota Pingo, ator, diretor teatral e agitador cultural, um ícone de Brasília com uma biografia respeitável e membro de uma família de artistas, para conversar sobre cinema e coisas afins. Estando muito empolgado com a ideia da realização de uma adaptação em forma de curta-metragem e promovendo na casa do “Pingão” muitos shows de Punk Rock, Heavy Metal e outros gêneros musicais no então Cine Teatro Grande Otelo, que ficava no Mercado Cultural Piloto, Jardim Botânico-DF, e em meio a mostras de cinema e teatro, exposições de artes e festas que aconteciam no local, percebia que tudo estava ali e era só começar a dirigir o curta. Mas um grande cara estava para se juntar a essa trupe cultural. Em 2011, em show da lendária banda punk “Olho Seco” no C. T. Grande Otelo, recebemos a visita do Ariel Invasor, figuraça da cultura paulistana, conhecido por ser o vocalista da primeira banda Punk Rock do Brasil, Restos de Nada (1978), e na ocasião se hospedando na minha casa, mostrei o conto a ele. A identificação foi total e não pude deixar de notar que vestindo-o com roupa sociais e óculos ficaria um ótimo Carlos Drummond. Ariel é um desses caras com forte visão cultural e tem facilidade com a palavra, não se fez de rogado e topou participar do projeto.
Transformado o conto em um roteiro para curta-metragem e contactados os apoios necessários para iniciar as filmagens, destacando-se aqui a receptividade do Bar Beirute, dos cinegrafistas Pedro Henrique Aguiar e Gonçalves Ribeiro, que colocaram a disposição seus equipamentos, tempo e o que mais puderam, marcamos as datas para a captação das imagens. No início de 2012, aconteceu um fato difícil, tipicamente brasileiro, meu pai foi vítima de um latrocínio dentro de casa. Mas a vida continuava e Jota Pingo era um elo entre nós e nossos propósitos em continuar agitando as mostras de cinema, shows, teatro e o nosso curta que em julho de 2012 com a volta de Ariel a Brasília, desta vez acompanhado da sua banda “Invasores de Cérebros”, fechava o grupo para iniciarmos as filmagens.
Duas semanas antes das filmagens, Jota Pingo me apresenta William Araújo, o Xuxu, uma explosão de personalidade, louco, enérgico, editor experiente, com vários longas e curtas-metragens no currículo. Xuxu me dá uma verdadeira aula de cinema e acompanhou toda a filmagem, apoiando no que foi necessário, e, se conseguimos um resultado satisfatório neste trabalho foi também graças a ele. E falando de importância, tínhamos o Broba, o charme do nosso filme. Broba é um grande cartunista da cidade de Ceilândia-DF, lenda do underground do Distrito Federal e grande amigo. Era uma grande oportunidade de homenageá-lo e Raí, como também é conhecido, acompanhou, figurou, ilustrou, criou fonte, logomarca e não saiu mais de perto até a conclusão das edições finais. Foram momentos de união e construção de alguma esperança neste ano que já tinha começado tão mal para nós.
No entanto, mais uma tragédia iria acontecer na nossa cena. Um desfalque irreparável na nossa turma. Jota Pingo morre no fim de 2012, duas semanas depois de ter gravado as últimas vozes em off do curta, de infarto fulminante aos 66 anos. Um velório emocionante no Espaço Cultural Renato Russo na 508 Sul, o “Velorock”, e uma mostra de filmes que contaram com ele no elenco no Cineclube Segunda Sem Lei marcaram a despedida. Brasília perdia além do artista um dos melhores críticos teatrais que marcaram presença nos anos 70 e 80, ao lado de Ary Para-Raios e Celso Araújo, este ainda conosco. Fiquei duas vezes órfão naquele ano e só me restava juntar as forças e terminar nosso trabalho e homenagear meu pai, Ramiro Vasconcelos, meu amigo Pingão e o jovem Ricardo Javier (Punk Sujo), meu aluno de Teatro que foi assassinado com um tiro enquanto dormia neste mesmo ano, tinha somente 19 anos. Cenário mais punk, difícil conceber.
Em 23 de março de 2013, no Festival Punk Sujo, em homenagem a Ricardo, lembrando um ano da sua trágica morte, é lançado o teaser do curta-metragem em show marcante da banda punk paulistana DZK em São Sebastião-DF. A motivação foi mantida e a DZK, que foi fundada no ano em que “João Brandão adere ao Punk” foi publicado no Jornal do Brasil, comemorava 30 anos de banda e juntamente com as outras bandas que tocaram no festival [1] reafirmaram que a chama punk ainda estava acesa e que a finalização do curta era questão de honra.
[1] Colapso Mental, The Insult, Anti Farda.
Durante 2013 e 2014 persistimos com a atividade cultural no nosso Cineclube Segunda Sem Lei, e promovendo shows. Destacamos a apresentação da clássica banda punk filandesa RATTUS (1977) e da pernambucana PROJJETO MACABRO, em São Sebastião-DF, com a participação de várias bandas locais [2]. Mas ainda era necessário gravar a trilha sonora, organizar os desenhos do Broba e filmar mais algumas cenas. Fofão (Besthöven) compõe a música-tema “João Brandão solo latem”, gravado com os trabalhos técnicos de Edmilton da Silva (ME Estúdio), por si só uma obra de arte do Punk Rock. Tomaz André, conhecido fanzineiro, autor e editor de livros. cuida dos desenhos tão essenciais para o estilo do curta-metragem e que mais tarde iria escrever em seu livro, “VelhosDemaisParaoRocknroll?”, a respeito da feitura e estreia do curta. Gonçalves Ribeiro vai comigo ao Gama filmar a marcante cena da TV que abre, fecha e envolve o filme em metalinguagem com participação dos punks presentes naquela tarde de domingo na praça do combalido Cine Itapoã.
[2] ARD, Marmitex S/A, Alarme, Água Sanitária, Death From Above (Gyn).
Resolvemos montar todo o estafe de montagem na minha casa no Tororó-DF, no início de 2015, e Broba e Xuxu mudam-se para lá, onde as edições aconteciam de dia e à noite. Cleon Omar, conhecido editor e produtor da Central de Produções, também aparecia por lá e dava toda a força que podia. Rita Andrade entrou em contato com os representantes do poeta e, contando nossa história, conseguiu a liberação dos direitos do conto. O trabalho seguiu freneticamente até o meio do ano, pois queríamos estar prontos para a inscrição do “48ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro” e à medida que o filme se desenvolvia na ilha de edição tínhamos a certeza de que estaríamos no Cine Brasília. Nos últimos dias para participar do certame estávamos prontos para a inscrição.
Durante todo esse tempo contamos com a ajuda, colaboração e incentivo de diversas pessoas que nos acompanharam durante todo esse tempo. Fabíola Lima, participando de todas as etapas da produção, inclusive financiando a obra, a companheira do Jota Pingo e produtora cultural Andréa Gozzo, Marciel e a turma da oficina Speed Car com seus carros antigos, Bitríce Bia, Patrick Ouger, Nem Tosco Todo, Barata Silva, Frango e Galinha Preta, Phú e Macakongs 2099, Gilmar Batista e ARD, Fernando Carpaneda, Thiago Botelho, Alex Amorim e o belo cartaz que fez pro filme, os punks da cidade, que apesar do descontentamento até consigo mesmos se apaziguaram e participaram das filmagens, e claro, da família, minha mãe Dona Ligia, minha filha Cora Dias e meu irmão Zé Colmeia.
A estreia no 48ª Festival de Brasília do Cinema brasileiro.
No dia 20 de setembro de 2015, num domingo às 17 horas, realizamos nosso tão sonhado desejo de estrear no maior festival de cinema do Brasil. Com a presença confortante do Ariel Invasor e sua companheira Tina Ramos, que ficou nacionalmente conhecida no filme “Punks 1983” ao ser entrevistada naquela época na porta de um show em que vários punks haviam sido barrados na entrada e, furiosa, dizia que “Punks têm que se foder, punks têm que tomar no cu, né não?”. Mas naquela tarde vários punks vieram para participar deste momento em que não seriam barrados mas sim homenageados num filme independente e feito no mais puro espírito “Faça você mesmo”. Mais de 1.600 pessoas no cinema puderam ver o resultado do nosso trabalho, que foi projetado ao lado de filmes realizados por renomados diretores da cidade, como Fáuston da Silva (O melhor fotógrafo do mundo) e também de estreantes como Ricardo Palito (Faz Seu Corre).
É claro que o filme foi muito aplaudido e rendeu muitos bons comentários e convites para outras mostra e reportagens. Uma curiosidade é que um de nossos concorrentes era o longa “O outro lado do paraíso”, (para muitos, injusta a concorrência de longas e curtas no mesmo festival), baseado no livro de Luiz Fernando Emediato. Sim, aquele mesmo que disse em 1982, na Folha de São Paulo, que os punks eram “adoradores do Diabo e de Hitler, que batiam em velhinhas, etc”. A notícia correu pelo Cine Brasília e alguns punks saíram a caça do tal escritor escroque para um esfrega básico que alguns mais exaltados fariam questão de cobrar essa devida satisfação pessoalmente. Sorte a dele, se estava lá, não foi encontrado.
Mas certamente as palavras de Edmílson Caminha, integrante da Academia Brasiliense de Letras e consultor da Fundação Carlos Drummond de Andrade, é algo que realmente nos lisonjeia. Na sua crônica, DRUMMOND, JOÃO BRANDÃO E O PUNK, ele escreve: “Carlos Drummond de Andrade gostaria de ver o seu ‘João Brandão adere ao Punk’ filmado em Brasília – no Conic, centro de comércio popular, e no Gama, cidade que outrora se dizia ‘satélite’ do Distrito Federal, a poucos quilômetros [e, ao mesmo tempo, tão distante] da nojeira que escorre pela Esplanada dos Ministérios. Se viesse por aqui, com certeza fugiria de sessões solenes e de encontros com deputados e senadores: preferiria chegar incógnito, disfarçar-se de João Brandão e aderir ao Punk que faz tremer a Capital da República..”
Ramiro Grossero, 12/07/2016.
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