“De Moto pela América do Sul”, de autoria do jovem Ernesto Guevara de la Serna, traduz a aventura deste juntamente com o amigo Alberto Granado e La Poderosa II, em direção às veias abertas da América Latina. Esse diário escrito foi filmado e responde pelo nome de “Diários de Motocicleta”, contudo não escaparam os protagonistas reais de serem ruminados, jamais engolidos, por parte da casta in do mundo da Sétima Arte e do establishment.
Para ser mais preciso, visitava um dos mega-portais de “informação” da internet brasileira, no qual constava que o Festival de Sundance era o primeiro a ter acesso à recente película latina. Uma ovação, tantos minutos de aplauso com o público de pé a aclamar o futuro lançamento mundial. Gestos ornamentais de calorosa recepção, chacoalhar de jóias e espocar de flashs direcionados a famosos. Arrisquei-me em algumas questões que passariam pelas cabeças desse grupelho intelectual e a sua mania de Midas: a iluminação, o figurino, a atuação do sempre brilhante Gael García Bernal, se ganhará o Urso de Berlin e/ou o Oscar, enfim, midiocracia a cozer maneirismos e achismos. Quem sabe o Oscar dos efeitos especiais? Ou vencer um festival patrocinado por marca de cigarros e telefônicas multinacionais, com direito a destaque no noticiário da CNN? Por que ignorar o sentimento espontâneo e de mergulho às raízes que impregnou essa viagem, lá nos anos 50?
Comprova-se o esperado pelos dois anos de feitio do longa-metragem do Walter Salles, considerando sua opinião num outro dia: “Quero fazer um cinema humanista, e humanismo e fraternidade não têm cotação na bolsa”. Já ilustram essas “últimas notícias” as imagens em Macchu Picchu e na colônia de leprosos na Amazônia peruana, nos exatos locais visitados pela dupla original, entretanto, também as especulações da vanguarda cinematográfica neoliberal. Travam verdadeira luta pela subsistência do status e pelo oxalá “bom retorno financeiro” da película, para eles, mero produto. Matérias começam a surgir, o estilista famoso talvez lançará uma coleção com o Che Guevara, ou impressões incas, para aproveitar o produto e criar uma modinha para o mercado. O cúmulo, parte II: não permitiram visto de entrada ao Alberto Granado, 83 anos. E só! Dos dois protagonistas, um está vivo e é proibida a entrada na sua “própria festa”?!?!?!
Repete-se o gesto brucutu, aquele antigo (e atuante!) hábito do governo ianque em suas investidas diplomáticas perante a concessão de vistos aos protagonistas reais, sim, os mesmos dos roteiros premiados ou premiáveis em circulação nos festivais e mostras em território sob a bandeira do Tio Sam. Bem poderíamos estar indiferentes a essa pré-estréia, só que o fato de desprezar a alma da história e mencionar a indigestão diplomática como um simples visto negado seria no mínimo cínico. Esquecem do (Fernando) Gabeira, proibido de se fazer presente lá em solo norte-americano à época do “O que é isso, companheiro”? Como o conivente Sundance, do Robert Redford, pode ser chamado de independente? Que lástima a intelligentsia quanto ao sentido dessa ficta independência… Interessa o termo independência no aspecto de captar recursos financeiros através de método diferenciado, talvez, e como se não bastasse, escolha de temas com características diferentes dos previsíveis hollywoodianos. É, Mr. Warren Beatty, isso lembra as artimanhas parecidas com as do Bonnie and Clyde…
Nada não, Doutor Granado. Deixe que glorifiquem o produto na sua (im)pura mercadologia. A satisfação do haver vivido a tal aventura sul-americana jamais poderá ser trocada por um contrato de exibição do making of na tv a cabo, ou pela edição especial de 10 anos do lançamento comemorativo de um dvd com a versão do diretor + 15 minutos inéditos. Melhor não ter ido. O filme será inevitavelmente especial, mas no ano da reeleição monopartidária ianque, prefira o descanso na Ilha. Na terra do Sundance não há “dança do Sol”, é o que esclarece o cinza-escuro das suas nuvens, aquelas que teimam encobrir o resto do planeta com a sanha exploratória. É nublado e previsível, ao contrário das românticas panes mecânicas de La Poderosa II, suas rotas e noites ao relento andino, ali quando o mundo começava a estar dentro das suas mochilas.
Revistas e jornais estrangeiros anunciam que não são indispensáveis posters do Che nos quartos, para gostar do “Diários”. Já estão disputando os direitos de exibição. Falam também que inclinações políticas são igualmente descartáveis ante as questões humanas expostas quer no livro, quer no filme. Então para que servem as questões humanas? Adorno e desculpa para sessões fechadas a burocratas e agenciadores? O que falar de uma sessão especial para o ex-vice presidente dos EUA, Al Gore? Micos e ossos do ofício, apenas.
O filme não saltou ainda aos olhos dos “pobres mortais”, embora existam dados suficientes para escrever certo nas linhas tortas desta dissimulação. É nula qualquer tentativa de apropriação dos ideais, da busca pelo conhecimento humano e pela liberdade. Uma história grandiosa, independente de elenco e direção, duela contra a investida sórdida das mãos engorduradas do capital no mundo das telas gigantes. Ou como preferiríamos, ao mundo das virtudes; esse o capitalismo jamais conquistará!
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por Ricardo S.
Imagens: Reprodução/www
(Publicado originalmente em 2004)