Para quem pensava que o ‘Sonic Mambo’ (98), junto com o single ‘Quando a Maré Encher’, este imortalizado também nas vozes de Cássia Eller e da Nação Zumbi, seria a herança dos pernambucanos do Eddie, chutou a bola para a arquibancada. A antena continua captando e a lama, pra variar, ainda é uma fonte inesgotável de experimentos. ‘Original Olinda Style’ (2003) começa a percorrer o Brasil e leva o ar da graça desta banda tão importante, criada lá pelo final dos anos 80 e início dos 90, egressa da efervescência que gerou Devotos do Ódio, Lara Hanouska, Querosene Jacaré, Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis, Chico Science & Nação Zumbi, Faces do Subúrbio, Mundo Livre S/A, Via-Sat, entre outros…
Às vésperas do aniversário da faca-de-dois-gumes que foi a marca “Mangue Beat/Bit”, termo criado a partir do “Manifesto Mangue” (Renato L. e Fred Zero Quatro), o Eddie lançou o segundo trabalho depois de cinco anos ausente das melhores lojas do ramo, e acompanha o nível positivo dos recentes álbuns (leia-se 2003/2004) da Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Devotos, por exemplo. Bem vivas, obrigado, as bandas mostram que o “movimento” também limitou oportunidades de vários grupos da então Manguetown, mas os que sobreviveram continuam afiados, quando o tema é manterem-se ligados à diversidade e sonoridades próprias. Ah, e bem distantes daquele restritivo (e mal informado!) selo de garantia que somente tambores e chapéus de palha acompanhavam os artistas que falavam de Pernambuco para o mundo, no “auge” do Mangue Beat/Bit.
‘Original Olinda Style’ chegou na segunda metade de 2003, e aquele que não se deixou levar pelas incompletas retrospectivas de 10 anos do movimento veiculadas na imprensa, ou não havia esquecido do Fabio Trummer e companhia, pôde vibrar com o irmão mais novo de ‘Sonic Mambo’, o cortejado disco de estréia. O primogênito contava com Trummer (voz, guitarra), Berna (bateria), Rogerman (baixo, vocal e atual Bonsucesso Samba Clube), El Mano (teclado), Fred (percussão) e Karina Buhr (percussão, voz), sem esquecer de músicas como ‘Buraco de Bala’, ‘Ontem Eu Sambei’ e ‘Pedra’, em versões roqueiras, anunciando que nem a banda teria vida curta, tampouco o público deixaria de compreender o disco subsequente, no estilo original Olinda.
Com canções bem menos adrenalínicas que o primeiro, o Eddie ressurge com 50 minutos de Olinda “distribuída e envasada” em doses ensolaradas e orgânicas de fusões, como a rabeca e o Drum ‘n’ Bass, ou se preferir, quando “o Sol brilha, cega e magnificamente colore as coisas”. Uma batucada numa mesa de computador… Uma lapada de aguardente de bits “no pequeno bar na esquina dos Quatro Cantos”, regando a verborragia causada pelas “betas” no recinto da Dona Dora…
O novo do Eddie, lançado pelo formato independente, é o “eterno trabalho em construção” dito por Trummer (guitarra, violão, voz e sample), agora acompanhado de Urêa (percussão e backing), Rob (baixo) e Kiko (bateria). As tradicionais parcerias assimilam a alma de Eddie, motivo até de música nesse disco, e dão a convidados como Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Ganjaman (Instituto), Bactéria (Mundo Livre S/A), KSB (Faces do Subúrbio), Isaar e Karina Buhr (Comadre Florzinha), Mônica Feijó, entre outros, a chance de fazer parte e provar dessa “massa” de influências.
E para não esquecer do apartheid cultural a que somos instigados a viver, que tal só agora conhecer o Erasto Vasconcelos, o qual além do sangue ser o mesmo do Naná Vasconcelos (irmãos!), tem trabalhos com várias figuras do mundo da música e traz a aura das ladeiras da cidade nas suas gírias e expressões? Segundo o próprio Trummer, “o Beta Vovô tem Olinda correndo no sangue, um menino de 57 anos”, daí o seu tom grande alma, que permanece em ‘Eu Soul Eddie’ e outras músicas do ‘Original’.
No final das contas, é o Eddie de volta ao cenário alternativo fonográfico, local onde marca presença, e somado ao primeiro álbum, garante a banda entre os trabalhos autênticos e interessantes da música feita no Brasil. Queiram os carimbadores da música ou não!
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A seguir, ideias trocadas com o Trummer, produtor; membro da Orchestra Santa Massa – projeto dividido com o DJ Dolores e uma galera; guitarra e (porta-)voz do Eddie no bate-papo.
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Ricardo Santos Falando da circunstância do intervalo de cinco anos entre um álbum e outro, alterações na formação, quais seriam as relações entre o Eddie versão ‘Sonic Mambo’ (1998) e a retomada com o recém-lançado ‘Original Olinda Style'(2003)?
Fabio Trummer O Sonic Mambo foi um cd que retratava mais a primeira fase da banda. Trabalhamos com um produtor gringo, o Tom Soares (NY), e a especialidade dele é Hardcore melódico, domado, e não conhecia nada de MPB, o que nos fez optar por mostrar o lado mais rocker da banda. Muitas destas composições do “Original Olinda Style” foram feitas antes do “Sonic Mambo”, mas não entraram no cd por motivos de direcionamento do trabalho.
Neste último, o direcionamento foi pro universo que cerca o dia-a-dia de Olinda; festas, costumes, vocabulário de rua, sol e ladeira, optamos por fazer um disco mais MPB, pois queremos trabalhar nossa identidade no momento. Não é nada definitivo, nossa música anda com os acontecimentos, nossa verdade é mutante e não sabemos como vamos estar soando no futuro, mas na verdade o que fizemos no ‘Original Olinda Style’ já vínhamos buscando desde o “Sonic Mambo”. Trabalhávamos esta música desde sempre. Mesmo com as frequentes mudanças de postos na formação da banda, o trabalho segue uma direção mais ou menos “na mesma direção”.
RS Essa “verdade mutante” do Eddie parece também estar muito ligada às parcerias. Por exemplo, no ‘Sonic Mambo’ tem ‘Eu Só Poderia Crer’, uma inédita do Fred Zero Quatro; em ‘Original Olinda Style’, vários músicos participam. Como cada um deles vai colocando a sua arte, sem divergir da musicalidade da banda? Aliás, de que forma foi sendo feita essa formação atual?
FT Nosso processo de criação parte de uma célula mínima na hora de gravar, e para compor nos baseamos nos shows e ensaios. Desta forma, as pessoas que participam de shows, ensaios, jams e etc., naturalmente têm sua parcela na nossa música, no caso do ‘Original’… Buscamos aqueles parceiros que tinham a ver com o style olindense, mas tudo é dirigido a partir da célula básica e sua viabilização a partir desta célula.
Agora, por exemplo, estamos trabalhando com os quatro membros oficiais da banda, baixo, guitarra, percussão e bateria. Todas as músicas se viabilizam para serem tocadas nos shows, o que é uma maneira de se expressar bem diferente dos estúdios, são trabalhos irmãos, mas não iguais.
A diferença básica das formações que o Eddie já teve é a identidade de cada músico, sua escola e seu interesse pelo instrumento de trabalho. Adaptamos os estilos a um todo que é a musica do Eddie, e esta música é momentânea e mutante de acordo com a formação em ação. É um eterno trabalho em construção, não tocamos igual todas as vezes. O que posso te dizer é que nossa música vem sendo lapidada por todos que passaram pela banda. Somos o que fizemos! Assim que funcionam as diferenças no Eddie.
RS A presença da Dona Dora e do Erasto Vasconcelos, dois olindenses “estilosos”, confirma o uso do “dia-a-dia de Olinda” na ambientação do novo disco. Qual a importância de recortar esse cotidiano e dimensioná-lo alto-falantes afora, no Brasil e no mundo?
FT Falar de Erasto é falar da minha maior fonte de estudo no momento. Venho me envolvendo com a obra de “Beta Vovô”, pois encontrei nela saídas originais para a MPB, uma maneira de ser MPB e ser universal e pop, atitude, etc.
Erasto hoje é um dos meus amigos mais recorrentes, trabalho junto com ele na gravação do seu primeiro cd, um cara que transita em todos os gêneros musicais com autenticidade, moleque das ruas de Olinda, que vive pra cantar tudo e a todos. Irmão do Naná Vasconcelos; morou em NY; tocou com caras da Tropicália; Clube da Esquina; Vernon Reid, do Living Colours; e tem Olinda correndo no sangue, um menino de 57 anos.
Dona Dora é a mãe de Dona Darcy, dona de uns dos bares mais importantes pra arte em PE nas décadas de 80 e 90, um pequeno bar na esquina dos Quatro Cantos, onde todos iam beber, dançar, ver, viver no meio do povo olindense, o mesmo povo que faz o tradicional carnaval de Olinda, pessoas simples.
Enxerguei nela, Dona Darcy, um exemplo de trabalhador batalhador do dia-a-dia no meio da loucura que regia as madrugadas dos Quatro Cantos, onde aconteciam as melhores e piores coisas possíveis.
Entre as melhores estava Dona Dora, cantora de corais católicos das igrejas de Olinda, que adora uma serenata, e fazia tudo pra cantar; qualquer violão que desse a cara por lá, ela intimava o dono, e por ter este lado da igreja católica que sempre dominou Olinda e formatou muita coisa por aqui, achamos por bem ela cantar com seu timbre de coral, para acentuar a sensação de estar em Olinda.
RS Que história é essa de “Beta Vovô” com o Erasto?
FT Beta é um peixe que se cria por aqui e é popular, pois se cria dentro de uma garrafa ou em frascos pequenos, e todo guri tem um no quarto ou num canto do quintal.
É um peixe que reproduz na garrafa, mas solitário e brigão, não vive junto de outro e quando se juntam, brigam entre si; se colocas um espelho, ele se arma tal qual um pavão, Bruce Lee para brigar com a imagem de outro peixe. Os maiores e mais fortes são as betas vovô, e é motivo de orgulho para seu dono; como um galo de briga campeão, desta maneira o Erasto é carinhosamente conhecido num grupo como Beta Vovô, e ele sempre responde: “Beta Vovô é o cacete”!
RS Destacar no release que o Mangue Bit serviu para injetar “vontade, coragem pra sair e mostrar a cara”, não faz pouco caso, por exemplo, do algo negativo de quando o “movimento Mangue Bit” foi “retransmitido” para o país como se fosse uma linha de montagem musical? Algumas bandas não cruzaram fronteiras por isso?
FT Quando você fala do Mangue Bit, você está certo em dizer que uma certa imprensa balizou o que seria o movimento, e isto atrapalhou muita banda por aqui, mas nós sabíamos que o Mangue Bit é o faça o seu bem feito e todos seremos fortes. A identidade de cada banda era o suporte do movimento; a metáfora do mangue, que é o meio ambiente com maior número de espécies convivendo num mesmo espaço, isto era nossa gasolina.
Não dá pra levar as manobras de mercado a sério, além do mais, éramos diferentes do que era o mercado na época, não nos adequávamos aos padrões das gravadoras do Sudeste. Depois de morto, Chico foi reconhecido, pois até então ainda éramos estranhos ao mercado atabalhoado, pretensioso e desorganizado, que controla o nosso país. Não tínhamos escolha a não ser ter paciência e amadurecer, crescer junto com nosso trabalho. É duro de viver assim, mas é digno e divertido, satisfatório.
RS Observa-se que o novo disco saiu como independente, ao contrário do anterior (pela Roadrunner). Lançar por este selo maior incorreu em prejuízos ao grupo, o “mercado independente” se afirma a cada dia como a melhor alternativa? Aproveitando o tema, de que modo você vê o circuito alternativo atual, pernambucano e/ou nacional, inclusive comparando com o decorrer dos anos 90, momento de propulsão do underground e do qual você fez parte?
FT Sobre o mercado alternativo, acho que está no seu melhor momento. Lembro de um bom momento na década de 80, onde surgiram vários selos e bandas gravando por eles, Fellini, Violeta de Outono, Sanguinho Novo (uma homenagem ao Arnaldo Batista), Sepultura, Vzyadoq Moe, e outras tantas que comprávamos por reembolso postal. Agora tá bom e rápido: a internet e as outras facilidades da vida contemporânea!
Na década de 90 caímos no conto das gravadoras e nada aconteceu, até as bandas que apareceram via major, só se destacaram por fazerem seu trabalho independente das gravadoras, caso da Nação e Mundo Livre…
Por aqui, com todo trabalho que fomentamos desde o começo da década de 90, as coisas andam numa velocidade razoável, temos espaço na mídia e resposta do público por conta disto. PE é um lugar bom pra bandas independentes, porém, um pouco fechada para sua própria produção, embora tenhamos várias bandas de reconhecimento extenso nas terras recifenses, como Ratos de Porão, Autoramas, Baia & Rock Boys, etc. Isto tudo se deve a um trabalho de primar por qualidade no som das bandas locais, organização, associação de ideias e muito suor e persistência de todos os pobres stars de PE.
RS Quais os sons que estão à cabeceira do Trummer? Seria possível nos contar sobre influências e coisas boas recentes?
FT Sempre gostei de música diversificada, mas tenho minhas preferências. No início, quando o Heavy Metal era muito popular na década de 80, ouvia Hardcore, Exploited, Dead Kennedys, paralelo ouvia bandas de Manchester e inglesas, junto com Stooges, e Reggae e Ragga. O meu primeiro lp comprado foi “Rocket To Russia”, do Ramones, Jane’s Addiction e Pixies, muito Pixies. Em casa, a Bossa Nova, o Samba tradicional e o Samba Jazz tocavam em alto volume, nas incursões etílicas do meu pai, e gostava de colocar músicas de seus discos, ficar discotecando com seu case de vinil, na década de 90.
Desde o início, o Eddie era a minha principal preocupação na vida, gostava de tocar e comecei a descobrir, ler sobre os bastidores dos grandes movimentos da música e fui mudando minha maneira de ouvir música; além de prazer, virou trabalho e com isso passei a pesquisar os movimentos, como se deu o Reggae jamaicano, quem fazia, quem gravava, quem vendia, por quê?
Livros, discos e histórias em mesas de bar, lendas e desmistificações, foi assim com o Punk, a Bossa Nova, o Samba clássico, ouvindo tudo e atento às formatações. Gostei muito dos cd’s do Beastie Boys, USS3, Cypress Hill, Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre, descobrir Fela Kuti, Nirvana, e assim estou indo, sem direção…
Ando escutando de tudo: Chorinho, White Stripes, coletâneas de DJ’s asiáticos mixando música asiática e africana, Rap americano, Samba antigo, Raptures, Lucas Santtana e música étnica, de preferência contemporânea. O Reggae todos da banda escutam muito, e a trilha de Amélie Poulain está entre as mais tocadas aqui em casa.
RS O que significa “Eu Soul Eddie”, antes que as más línguas cheguem primeiro?
FT Eu Soul Eddie é uma brincadeira com “alma de Eddie”, como se fosse, “minha alma é Eddie”.
RS Falando sobre o álbum mais recente, como foi o esquema de lançamento? Independência total e irrestrita?
FT Não somos pedra nos sapatos das gravadoras, a pirataria sim. Tiramos a pedra do nosso sapato e vamos confortável pra onde queremos, neste Brasil de merda que não tem oportunidades pra um cara nordestino classe média decadente; que não tem amores por estudo, e ter uma fonte de renda fazendo o que gosta é ter uma vida de magnata, com todas as dores de cabeça e contas vencendo o prazo.
Este é o dia-a-dia dos pobres stars e suas magníficas máquinas de fazer música do nada, embalar e vender, ter controle sobre o que entra e sai, o que é sempre bom… O resto são anos de trabalho, viagens, investimentos e buscando a identidade própria, desenvolver nossa música, não parar em fórmulas, incluindo aí fórmulas que as grandes gravadoras manipulam.
RS Quanto aos seus projetos paralelos, alguns ainda na ativa?
FT Estou trampando num projeto dos bons, o cd do Beta Vovô (Erasto), o primeiro de sua vida e estamos orgulhosos disto. Trabalho em família, fazendo o novo do Eddie, ensaiando e lapidando; trabalhei recentemente com o cd do ‘A Mula Manca e a Triste Figura’, banda daqui da cidade, bem original, acessível e diferente do convencional.
RS Considerações finais…
FT Sobre considerações finais, eu poderia falar da importância da internet no processo de divulgação da cena independente brasileira. O que antes era feito por meios de fanzines e algumas publicações específicas, hoje tem na internet a velocidade, a facilidade e a quantidade respeitável de parceiros na construção de um mercado de qualidade e rico em diversidade, o que para um país do tamanho do Brasil é, no mínimo, muito saudável, e o que para uma banda como o Eddie é fundamental.
Vejo com bons olhos os caminhos que a música vem tomando, com autonomia, iniciativa, despretensão e acima de tudo, dignidade. Não temos que vender a alma numa encruzilhada para ser um funcionário da música. Temos que praticar as boas ideias, organizar e fazer as coisas acontecerem, mudar os caminhos, botar a música nas ruas, construir nosso mundo, e confio na música como o principal meio de troca de culturas e diversão entre povos diferentes; a música como meio de formação da cidadania, como solução para diferenças.
Vou vivendo a música com o que ela me dá, e vou seguindo os bons sons, deixo eles me guiarem, eles que sempre me levam a lugares agradáveis com pessoas interessantes. É assim que tem sido e deste jeito está massa. Vou por aí, até um dia destes, abraço a todos!
por Ricardo S.
Imagens: Divulgação/Eddie
(Publicado originalmente em 2004)