O mais constante endividamento


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Entrevista: Cada vez mais endividadas, micro e pequenas empresas vivem situação de desespero

por Ângelo de Carvalho

“A situação da família foi cortar despesa. A cada dia cortando uma. Não posso adquirir um carro, não posso adquirir nada, nem um eletrodoméstico eu posso”. Essa foi a receita encontrada pelo senhor Wilson, dono de um comércio na zona oeste do Rio de Janeiro, entrevistado recentemente pelo AND, para sobreviver à crise.

Forçado a enfrentar a inflação, a concorrência com os atacadistas do capital monopolista e a redução nas vendas devido à carestia de vida do povo, Wilson ainda enfrenta o endividamento. Por conta principalmente dos múltiplos empréstimos que foram concedidos aos micro e pequenos empresários durante a pandemia por meio de programas como o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), esta é a situação de milhões de brasileiros.

Em 2022, em torno de 6 milhões de empresas estavam não somente endividadas pelo Pronampe, mas inadimplentes com as suas dívidas. Dessas 6 milhões, 5,5 milhões eram pequenas empresas. O número representa um aumento de 200 mil se comparado ao ano anterior. Como advento cruel ao endividamento, os milhões de micro e pequeno empresários ainda são forçados a enfrentar a elevadíssima taxa de juros de 13,75% imposta pelo Banco Central e seu Comitê de Política Monetária (Copom) chefiado pelo magnata Roberto Campos Neto. O reflexo dessa situação se encontra nos dados sobre o setor de serviços no Brasil: ao mesmo tempo que é o que mais emprega no país, foi o que menos cresceu. No início do 4° trimestre, o crescimento desse setor foi de apenas 0,2%.

O Pronampe foi lançado no ano de 2020 como uma proposta de “auxílio” aos pequeno e micro empresários. Essa suposta aparência “assistencialista” do programa era justificada pela sua baixa taxa de juros: em 2021, os juros do Pronampe eram calculados a partir da taxa Selic + 1,25%. À época, a taxa Selic estava em 2,25%. No ano seguinte, a fórmula do Pronampe foi alterada para a taxa Selic + 6%. No mesmo ano, a taxa subiu dos então 2,25% para 9%. Em outubro de 2022, a taxa Selic atingiu 13,75%, valor que se mantém até atualmente.

Ou seja, o valor dos juros do Pronampe elevou-se dos 3,5% iniciais para exorbitantes 19,75%. Um aumento de 511%. Em números reais, quem pegou R$ 100 mil de empréstimo e esperava pagar R$ 3,5 mil ao ano, agora paga R$ 19.750 reais anualmente. Nessa realidade, muitos microempreendedores se sentiram encurralados. Não são raros os casos em que novos empréstimos são contraídos somente para pagar as dívidas, e não para investir.

Em entrevista ao AND, Wilson descreveu como está a situação de sua pequena empresa e ofereceu seu panorama sobre os programas de crédito do governo, a carestia de vida do povo e o endividamento em massa dos micro e pequeno empresários.

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A Nova Democracia: Você poderia abordar as condições do seu negócio do início da pandemia até os dias atuais?

Wilson: Na época da pandemia eu era mais ligado ao comércio de bebidas, consegui me diversificar (na venda de mercadorias) um pouco pra poder quebrar essa crise toda. E hoje, a gente vive numa situação difícil, porque a gente não vê no horizonte uma possibilidade de se tapar a sequela da pandemia, ou seja, não há movimento (no caixa) para pagar a dívida que foi adquirida na pandemia. O governo foi muito bacana não deixando pagar o imposto na época da pandemia, mas em compensação hoje você tem que pagar o imposto anterior mais o atual, sendo que o imposto de um, dois anos, vem com juros, correção monetária, embora seja parcelado, há um problema de endividamento.

O problema todo é esse, e também deram um Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) pra gente, que foi usado como forma de socorro para pagar as despesas atuais, não para investimento, pois como se poderia investir sem consumo? Não adianta, geralmente se pegava o dinheiro pra pagar uma conta, como a luz que tinha que ficar acesa enquanto o comércio estivesse aberto.

Isso porque meu nicho, de mercearia e comércio, esteve aberto durante a pandemia, enquanto outros negócios ainda estavam sujeitos a pagar o aluguel ao proprietário sem mesmo estar com o negócio aberto. Mas tivemos também que pagar o aluguel mesmo sem receita; com sustento nas vendas, o principal era pagar as despesas de casa e também as necessidades básicas, e lutar pra pagar aluguel sem receita.

Os fundos de garantia aos empregados, que na época eu tinha, e todo custo fixo com a mão de obra sendo pago com o dinheiro do Pronampe. Os impostos sobravam nesse cálculo, logo iam acumulando também, e hoje tudo (empréstimos + juros) começou a ser cobrado, só que não há venda para pagar o passado e o atual.

Na verdade, a microempresa e o pequeno empresário deveriam receber auxílio emergencial, também. Já pensou se todos que receberam auxílio emergencial tivessem que pagar agora? Então a situação é bem parecida com a de uma pessoa física, que recebeu um auxílio emergencial para pagar suas despesas, o mínimo para sobrevivência. Porém a microempresa tem que devolver ao governo, e hoje há um crescimento (econômico) nacional pífio, com a sequela de pandemia, devido à inflação, e o povo tá com dificuldades de comer. Assim os assalariados não consomem como deviam consumir, afetando a receita para pagar o passado e o presente.

AND: Como o agravamento da crise econômica afetou sua família? O senhor chegou a contrair crédito de algum banco para manter o negócio na ativa?

W: A situação da família foi cortar despesa. A cada dia cortando uma. Eu tenho uma despesa mínima, até por ser um microempresário eu tenho uma vida bem humilde: não posso adquirir um carro, não posso adquirir nada, nem um eletrodoméstico eu posso.

Consegui um recurso pela Caixa, logo depois com o Itaú do Pronampe, mas quem deu foi o governo. Esse Pronampe o banco particular te dá, mas com o aval do governo. Como já foi mencionado, a gente tá vivendo um crescimento muito devagar há anos. A minha visão é que tudo foi enxugado: já tive quatro funcionários, hoje praticamente tenho um.

Consigo sobreviver porque trabalha eu, minha esposa, meu filho, e o outro filho me ajudando aos domingos. É claro que eu pago todos, mas não tenho aqueles encargos trabalhistas que são direitos do funcionário, e uma empresa pequena não consegue pagar. Então nem empregado direito eu posso ter. Antigamente eu conseguia pagar todos os direitos tranquilamente.

Com a diminuição do poder aquisitivo do povo, também diminuiu a margem de lucro da gente, porque o povo não tem dinheiro para suprir suas necessidades básicas. Eu moro numa área da periferia de Campo Grande. O centro já possui baixo poder aquisitivo, ainda menor na periferia, então eu sou obrigado a trabalhar com uma margem de lucro muito apertada.

Outra coisa que pesou sobre os pequeno e microempresários foi o aumento da presença dos grandes atacadistas na região: hoje em dia tem o Assaí, o Super Compras, Don Atacadista… Como eu com meu pequeno negócio vou competir com eles que possuem um volume (de capital) muito maior? O mínimo que eu tinha que ter era uma carga tributária menor em cima do volume do meu faturamento. Hoje ainda sofremos disso, com as grandes redes sufocando a gente por questão de preço.

Então o dinheiro que eu recebi do governo eu não ganhei, na verdade foi pra manter meu negócio aberto e pagar minhas despesas, não pra comprar um carro ou fazer investimentos. Usamos como uma pessoa física usou seu auxílio emergencial.

AND: Sobre o Pronampe especificamente, que prometeu crédito a juros baixíssimos, porém com o passar do tempo e o reajuste de acordo com a taxa Selic, aumentou a dívida em doses cavalares. Como o senhor vê essa promessa que não foi cumprida pelos governos de turno, que por consequência endividou principalmente o micro e pequeno negócio?

W: Pra mim, ele me atendeu nas demandas emergenciais, porém demorou a ser liberado. Saiu em 2022 e estou começando a pagar agora. Me rastejei na pandemia, tive que dispensar funcionários, enxuguei as contas ao máximo, vivi com o mínimo. Antes eu consegui o Fampe (Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas), pela Caixa Econômica, que comecei a pagar agora também.

Primeiro eles deram a carência (de juros), até aí tudo bem, mas agora o cenário é que as pequenas empresas estão suando pra pagar. Do que adianta a pessoa pagar uma coisa que não tem como pagar, tendo risco de fechar a empresa com outras contas? Nada. Não fechou o negócio na pandemia pra fechar agora? O foco são as dívidas principais para manter o negócio e a família.

Eu pago uma prestação de 1600 de um (programa de crédito), e outro em 2158. Como tá no início, vou continuar até a hora que não der pra pagar, essa é a realidade. Eu não vou deixar de pagar um fornecedor que vai dar matéria-prima pra mim, pra pagar um dinheiro que é pro governo. Porque eles socorrem as grandes empresas, como ocorreu com a Ambev.

Já tentei um reparcelamento na Caixa Econômica, e a gerente falou que por enquanto não seria possível. Vou ter que deixar de pagar pra eles começarem a pensar em fazer alguma coisa com relação a isso. Procuro não fazer despesas para poder conseguir pagar, e esperando agora um governo que mudou, com discurso de atender às classes populares, se alguma coisa vai ser feita para reverter essa situação de consumo baixo.

Na minha opinião, a dívida das micro e pequenas empresas devia ser anistiada, senão vai ficar impagável. Eu vou ficar trabalhando por mais dez anos pra pagar uma sequela da pandemia. Nunca me chamei de microempreendedor, me considero empregado, porque eu vivo disso aqui, não retiro lucro, apenas trabalho e pago despesas. Não tenho perspectiva de lucro pra pagar isso, nem pra investir na minha venda por conta de uma dívida de pandemia.

Com o Pronampe, o pagamento foi acordado em 42 prestações. Tô comprometido com isso por três anos e meio, engessado com minha venda. Isso olhando somente pro Pronampe, por uma dívida que não tivemos culpa.

AND: A tendência é que enquanto a crise se agrava, os grandes negócios têm suas dívidas perdoadas, e privilégios fiscais, e trabalhistas (ou seja, exploram mais o trabalhador, retirando seus direitos); enquanto os pequenos não dispõem de programas para conter os endividamentos. Só olharmos o governo Luís Inácio que em 2008 “se safou” da crise por conta apenas do boom da agroexportação, mas quando, no segundo governo Dilma, os grandes empresários necessitaram aumentar suas taxas de lucros, abriu-se até hoje um período de grave e mais constante endividamento do que na época anterior. Há alguma perspectiva com relação a novos programas no futuro? O que o senhor acha dessa condição dos grandes empresários a custas do suor dos pequenos empresários e trabalhadores?

W: Minha perspectiva é nenhuma. É viver com o que eu tenho. Dinheiro emprestado pra mim atualmente só se eu não precisar pagar depois, porque não vejo saída saudável nisso. Não se sabe também o que se esperar de um governo atualmente. Esse atual, de grande coalizão, não sei se vão fazer reformas. O poder do capital é grande no mundo todo.

Quando o Temer veio, fez todas reformas que eles (latifúndio e grande burguesia) queriam: trabalhista, da previdência etc. Só faltou fazer a tributária. Quem mais se deu mal nisso tudo foi o operário, o peão, que trabalha, se aposenta e morre, essa é a verdade. Se aposentar com 65 anos, dependendo de uma saúde pública que só faz exame preventivo, né, ou seja, só descobre a doença quando você tem.

Eles querem isso mesmo, que o trabalhador doe 35, 45 anos de contribuição da previdência pra usufruir 5% do total, isso porque não conseguiram passar a reforma que o Guedes queria, aquele banqueiro. Privatizaram a Cedae e se puderem vão privatizar tudo, e com discurso que vai melhorar e não melhora nada, só ver a Supervia.

Vou ser sincero, não recolho todos os tributos que tenho que recolher, porque se eu recolher, vou quebrar. Além dessa concorrência desigual com o comércio de rua, não sendo culpa deles (comerciantes de rua), mas é dado a eles outras isenções e, muitas das vezes, são negócios de gente aposentada pra complementar a renda. Por exemplo, eu pago um comércio na periferia de Campo Grande com 1600 só de IPTU. De onde tiraram isso? A renda per capita é mínima, eu vejo isso olhando a dificuldade que meus clientes têm para comprar o essencial, pra comer de fato. Por fim são reformas só pra manter o rico mais rico. Até a condição de MEI, que é pro patrão não pagar direito trabalhista. Terceirizando os trabalhadores para não manter vínculo empregatício.

No fundo os pequenos empresários têm que sonegar pra sobreviver, o futuro é muito sombrio. Eu tenho vida como dono de empresa por 20 anos aproximadamente, e tive um terço da casa penhorada por causa de dívida do INSS por conta de despesa da primeira empresa que tive. Veja só, a casa é de herança da minha mãe, penhorada por dívida que era absurda pra gente pagar.

Politicamente, não existe esquerda e direita. Tem o lado do pobre e o lado do rico, essa é a verdade. Mais uma vez, zero perspectivas para o futuro.

{ A Nova Democracia }

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