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O ser do consumo é o consumo do ser
por Elisângela Silva Bispo
No século 19, o Fordismo e o Taylorismo buscaram organizar a sociedade em torno da valorização do capitalismo industrial de produção seriada, isolada e setorizada. Algumas décadas depois, nos tornamos uma sociedade capitalista, globalizada, baseada no consumo de massa, que em pouco transformaria quase todas as coisas duráveis em facilmente descartáveis. Coisas mais frágeis se consomem mais rapidamente e logo são substituídas e, assim, o ciclo prossegue e o consumo aumenta.
O processo de desenvolvimento econômico que se viu no pós-guerra foi bastante impulsionado pela publicidade nos meios de comunicação de massa, o que permitiu a massificação dos produtos industrializados. O êxito estava (e ainda está) na supervalorização das grandes marcas, apresentadas como símbolos de status social, o que estimula o desejo de consumo e leva a pessoa ao ato de compra. Investimentos pesados em propagandas, que na época eram bem menos agressivas do que como as vemos agora, deram início ao que, hoje, chamamos de a Era da Imagem.
Outros fatores que surgirão ao longo do tempo serão fundamentais para o surgimento de uma sociedade da imagem: a cultura de massa ganhará mais corpo, ampliando o acesso às artes; a mulher ocidental se revoltará contra o machismo, reivindicando sua posição na sociedade, mas o corpo feminino passará a ser mais explorado em todos os sentidos; a ciência se desenvolverá consoante à tecnologia e vice-versa, o que dará origem à Era da Informática e da Telemática.
Em menos de cem anos, cores, tipos, formas e sons passaram a redimensionar todos os aspectos da vida contemporânea. O ser e o ter passaram a se misturar e se confundir, forçando constantes metamorfoses do pensamento humano, levando o homem ao caos existencial. Logo, a configuração social do ocidente, até então baseada na visão fordista, com promessas de grandes realizações e capitalismo “pesado”, se reorganizou sob a óptica do capitalismo “leve”, onde os valores são sempre questionáveis, e onde tudo é incerto (A edição do corpo: tecnociência, artes e moda. Barueri, SP: Estação das Letras, 2007, p. 54).
O ser do consumo
No processo de recuperação da economia mundial no pós-guerra, a indústria da moda se tornou um dos grandes tentáculos do capitalismo com investimento na industrialização da beleza e estímulo ao consumo massivo. A produção seriada deixou de ser apenas um meio de expansão de bens, produtos e serviços, para se tornar também um meio de inserção e ascensão social, através do consumo das tendências ditadas no cinema, na TV, nas passarelas e nos editoriais de moda. A palavra moda, doravante que se refere a tudo que envolve a área de vestuário, acessórios, maquilagem, calçados e, até mesmo, comportamentos.
Com o advento da publicidade, a indústria da moda começou a desempenhar papel fundamental para a construção de uma nova identidade social do sujeito mass media, baseada na valorização da imagem ou da autoimagem, partindo dos paradigmas estabelecidos pelas grandes grifes. Assim, consumir deixou de ser um simples ato de compra para ser um ato de ressignificação social, ainda que não seja real, de fato, mas apenas ilusória. Anulamos a sociedade baseada no trabalho de subsistência para nos tornar uma sociedade que constrói imagens como meio de existência. O ter e o parecer se sobrepuseram ao ser.
Nesse contexto de mudanças de perspectivas e valores sociais, o discurso da indústria – a publicidade – vai se adequando às épocas e às diversidades locais. Sempre fascinante, seu poder de sedução se tornará a grande arma da indústria da moda. A publicidade “trabalha com a fetichização da mercadoria, mostrando sempre o caráter de novidade do produto”, ressaltam Santos Neto e Barbosa (Propaganda e Publicidade, Linguagem e Identidade, Consumo e Cidadania: articulação entre conceitos e suas significações. Trabalho apresentado no III Intercom Júnior – Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, p. 1). O discurso publicitário ressignificou o ato de consumo por combinar as linguagens verbal e não-verbal. Essa combinação de vários signos numa mesma mensagem é usada para estimular a venda de produtos a determinados nichos – público-alvo.
No campo da moda, o objetivo inicial da publicidade é despertar fantasias e desejos de nos tornarmos socialmente vistos e aceitos através da expressão estética do corpo. Quando a essência passa a se expressar através da aparência, o efeito da publicidade ultrapassa o campo da razão e invade o campo da emoção para estimular a necessidade de consumo. Assim, a propaganda avança para o objetivo final que é nos induzir ao ato de compra, ainda que não tenhamos necessidade dela. A publicidade, então, é “responsável por divulgar a ideologia vigente no sistema capitalista, em que o incentivo ao consumo é a base da produtividade econômica do processo publicitário” (ibidem). A alta rotatividade das mercadorias, cada vez mais tendentes ao descartável, é o ponto-chave da publicidade de massa na indústria da beleza, e no capitalismo em geral.
O consumo do ser
A partir dos anos 60, o ocidente, de acordo com Villaça (ibidem), passou a valer-se da moda capitalista, para expressar ideias, desejos e crenças que permeiam a sociedade, numa dinâmica que envolve a questão da individualidade, moralidade religiosa, identidade de gênero e etc. Os corpos são modelados de acordo com o que se apresenta como paradigma de beleza e não do ponto de vista da saúde ou do que é necessário e faz bem. As vestimentas deixaram de ser funcionais e passaram a ser sociais, conferindo status quo ao portador. Juntamente com a indústria da aparência surgem os “conselheiros” sociais, apresentando-se “como iguais a qualquer um, porém como espelho – como algo a oferecer que possibilita a admiração e submissão dos demais” (A edição do corpo: tecnociência, artes e moda. Barueri, SP: Estação das Letras, 2007, p. 51). Artistas, estilistas, consultores se apresentam como modelos e espelhos. A moda passou a definir o ser social do mass media.
A busca pelo senso de pertença se tornou o grande alvo. Identificação com ícones mediatizados se torna algo obsessivo para determinados grupos de indivíduos, como os jovens e crianças – pessoas muito mais vulneráveis aos fetiches da publicidade, que promete “torná-los” tão desejáveis quanto seus “ídolos”, em virtude do desejo de projeção e aceitação social. Mas a moda, em si mesma, não é vilã de nada. Ela é fundamental para atualização de tendências e estilos, adequação aos tempos e espaços. Os problemas podem começar quando o ato de consumo, que é o objetivo final da publicidade, foge ao controle do senso crítico. Debord (Debord, Guy. A sociedade do espetáculo, p. 19) alerta que “onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes, típicas de um comportamento hipnótico. O espetáculo… encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; a visão, o sentido mais abstrato, e o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual.”
A imagem se firmou como espelho social da indústria do consumo, e a moda é o reflexo mais cobiçado. Avalanches publicitárias se desprendem dos “picos industriais” e descem à toda velocidade, varrendo diariamente nossos sentidos, deixando-nos perdidos, destituídos de raízes ou identidade própria. Muita gente acaba por consumir ou usar coisas não porque gostam, ou têm necessidades, mas apenas para conquistar status social. No decorrer do tempo, isso provocou a perda de valores e estimulou grandes reflexões sobre a sociedade do espetáculo, o abandono do espírito crítico, a crise da representação, dos fundamentos e da possibilidade de projeção.
Nas sociedades do espetáculo, o “objeto do consumo” é muito mais o próprio ser (humano) do que a coisa em si mesma. Programas de TV, publicidades e concursos de beleza como o “Menina Fantástica”, encerrado em dezembro de 2012, contribuem de forma esmagadora e impiedosa para a perpetuação de um ideal de beleza quase sempre irrealizável, inalcançável para a maioria das mulheres (principal alvo da moda), preconceituoso do ponto de vista étnico-racial e ético-social.
O ato de consumir ressalta ou ressignifica as diferenças. E a indústria da moda, sabe bem o peso que isso tem. Por isso, a ênfase está na ideia de que consumir determinada marca leva ao destaque, à individualização e à generalização do ser. Esta última pode ocorrer de duas formas: quando o indivíduo é igualado à tribo com a qual se quer parecer ou quando integrado ao grupo ao qual se quer pertencer. Na atividade de consumir, algo se perde; no ato de usufruir, algo se ganha. E nessa relação antitética, o ser é isolado do seu meio de origem, pois esse isolamento é natural para que se produza o destaque que se busca.
Considerações finais
Pensar a questão da cultura do consumo e da moda é refletir sobre as várias vertentes da arte publicitária. A primeira vertente é que essa arte é uma ciência fundamental para a mobilidade, fluidez e reelaboração do mundo capitalista, que depende diretamente da divulgação de seus produtos e mercadorias para que estes cheguem ao consumidor. Do outro lado, a publicidade é a razão de ser de muitos meios de comunicação.
No campo da moda, ao mesmo tempo em que a peça publicitária cria oportunidades para mostrar as diversidades, fatalmente abre espaços para o preconceito, a discriminação ou mesmo para demarcar a diferença como sendo algo exótico ao invés de, simplesmente, diferente. O grande jogo da linguagem publicitária (e talvez o seu maior problema) é estimular as vaidades, em todos e por todos os sentidos, ao ponto de muitas vezes confundir o ser com o ter. Nessa condição, o ser é reelaborado a partir das atuais condições de produção, circulação e consumo das culturas – o que ocorre tanto em âmbito local quanto em circuito global. Por fim, assim como o vestir, o consumir é algo totalmente simbólico, embora concreto do ponto de vista do objeto, mas em hipótese alguma é um ato destituído de intenção.
{ Observatório da Imprensa }
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