Texto do início de julho de 2010, outro da safra de materiais publicados no período da Copa da África. Aqui o espólio continuará a ganhar eco, devidamente guardado no “Favoritos”, o qual curiosamente, passada a competição internacional, deixa de ter novos capítulos em grande parte dos veículos.
Acabam recorrendo ou à ausência do tema esportivo como condutor de debates além da própria seara, ou ao contexto limitado de repercutir escritos menos abrangentes que o interesse “lúdico” nos esportes.
O que segue trata da vingança e traz a Seleção de 2006 como o alvo do repúdio impiedoso, segundo o autor, dos torcedores brasileiros. (Ricardo S.)
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A lógica da vingança no Brasil contemporâneo
Mesmo na festa do futebol, percebe-se a dificuldade de se perdoar e compreender os erros dos outros. A seleção verde-amarela foi derrotada na última Copa do Mundo e muitos torcedores derramaram o seu ódio contra alguns jogadores e, especialmente, contra o técnico.
por Luís Carlos Lopes
A ideia da retaliação, do “olho por olho, dente por dente”, teria nascido na Babilônia, na região onde atualmente fica o Iraque há quase quatro mil anos atrás. Generalizou-se nas civilizações da Antiguidade Clássica, orientais e ocidentais, sendo criticada e considerada bárbara a partir do advento do cristianismo. Vingar com o máximo de violência possível, impondo a verdade de uns sobre a dos outros se tornou uma crença universal e de farto uso na história da humanidade. Infelizmente, tais práticas estão ainda muito vivas e com peculiaridades contextuais.
O Velho Testamento e o Corão consideraram este princípio como natural. Sua aplicação no reino dos homens foi interpretada como algo correto e necessário. Mesmo nestes antigos códigos religiosos, encontram-se ambiguidades e contradições no que se refere ao uso da pena de Talião. Nela, a justiça foi entendida como punição extrema iluminada pela vontade divina.
A lógica da vingança poderia também ser chamada de lógica de punição, sem a existência do direito de defesa assegurado. A descrição do julgamento de Cristo, contida nos Evangelhos, informa sobre um tipo de justiça, onde o juiz lava as mãos e a condenação já está decidida antes da formalidade processual. Não há defesa possível e o próprio julgamento já é o início da punição que levará o condenado à morte dolorosa por ter ideias desviantes do poder da época.
Não há certeza histórico-material da existência deste tão famoso personagem injustiçado. Entretanto, os Evangelhos, se lidos por quem não é religioso e dogmático, consistem em importante fonte para a compreensão de velhos costumes da humanidade. Segundo esta fonte, como repetem muitas outras de origem pagã, assim funcionava o Império Romano. Não era possível discordar ou fugir da punição. A execução sumária tinha livre trânsito, sendo usada contra opositores políticos, escravos rebelados, estrangeiros descontentes etc. Foi também utilizada contra os cristãos, nos três primeiros séculos de existência deste culto em Roma.
A condenação da vingança feita nos Evangelhos foi esquecida pela Igreja medieval em luta contra os seus dissidentes e os árabes. Na época das grandes navegações e da formação dos impérios coloniais europeus, a mesma lógica foi o mote da exterminação e sujeição dos indígenas das Américas e da justificação da escravidão dos africanos. Houve contestações no seio da Igreja que se dividia entre o pragmatismo colonial e a doutrina cristã. Predominou a visão que em nome de Cristo e da religião tudo era válido e permitido. A lógica da vingança conseguiu dar um jeito de burlar os Evangelhos e ter livre curso.
A mesma fé servia para justificar todos os ângulos do processo histórico, inclusive o da disputa entre as potências coloniais. Os livros sagrados eram iguais ou similares, entretanto, suas leituras interpretativas específicas davam o verdadeiro tom do uso das doutrinas na vida prática. Os protestantes, com uma interpretação mais próxima do Velho Testamento estavam mais livres para praticar a vingança em nome de deus. Até hoje, é possível notar que estes assumem mais facilmente a vingança do que os tributários da interpretação católica do mesmo cristianismo. Comumente, estes últimos tendem a fazer algo parecido, com disfarces na linguagem e estilos próprios.
No Brasil, por exemplo, não se tem a pena de morte oficial há mais de cem anos. Entretanto, de há muito, a execução extrajudicial mata mais por aqui do que em qualquer país onde se peça a morte oficial de quem cometa crimes violentos. A história do Brasil colonial e imperial é cheia de casos de violência vingativa brutal, como no conhecido exemplo de Tiradentes e da Guerra do Paraguai. Na jovem república, não faltaram exemplos de vinganças de todo o tipo cometidas pelo Estado contra insurgentes, tais como as praticadas em Canudos, Contestado etc.
Os fora-da-lei sempre foram tratados no Brasil com brutalidade máxima. A tortura é uma velha instituição originária da escravidão e ainda hoje usada contra os presos comuns. Apesar de ser usada como uma prática de Estado, ela sempre encontrou forte apoio social. Desejosos de uma segurança negada pelo Estado, vários estratos sociais, inclusive parcelas expressivas dos pobres, acreditaram e acreditam que a violência extrema é um bom modo de conter o crime e de trazer segurança à população e aos interesses patrimoniais. O baixo nível de compreensão política, amplamente cultivada pelas elites e pelas mídias, dissocia o crime de problemas sociais, tais como o desemprego e a ignorância.
Na ditadura Vargas e na época da ditadura militar, o mesmo expediente foi um dos pilares da opressão destas fases da vida política nacional. A lógica da vingança, expressa com todas as cores sanguinolentas da tortura, da execução e da prisão, serviu como um meio convincente de estabilizar regimes impostos à sociedade de modo arbitrário, isto é, frutos de golpes de Estado e da manipulação da opinião das maiorias. Os poderosos vingaram-se dos que ousaram discordar de seus métodos e defenderem alternativas ao status quo. A diferença de um passado remoto, é que isto passou a ser feito sem maior alarde. Sabia-se que os crimes eram praticados, mas eles não eram assumidos publicamente. Difundia-se o medo de modo parcimonioso e direcionado aos alvos que se queria atingir.
A lógica da vingança continua viva no tecido social brasileiro. Não se trata de algo que se relaciona exclusivamente ao ato de governar. Está presente em mil e um fatos da vida cotidiana do país. É possível vê-la nas relações interpessoais, infelizmente, povoadas de atos desta natureza. Ódios irracionais contra o que não se compreende bem, e, por vezes, se imagina como algo único e fundamental para vida de cada um. A lógica da vingança implica inventar inimigos e esquecer dos verdadeiros algozes.
Mesmo na festa do futebol, percebe-se a dificuldade de se perdoar e compreender os erros dos outros. A seleção verde-amarela foi derrotada na última Copa do Mundo e muitos torcedores derramaram o seu ódio contra alguns jogadores e, especialmente, contra o técnico. Torceram contra seleções latino-americanas, esquecendo o que o Brasil representa no mundo contemporâneo. Não lembraram ou não sabem que o futebol atual é um negócio com múltiplas faces e interesses envolvidos, continuando a ser um jogo, com possíveis resultados aleatórios. Este excesso de paixão demonstra a persistência de uma visão antiga, punitiva e raivosa.
A lógica da vingança esconde um fato capital. Toda a vingança extrema é injusta e incapaz de reparar qualquer problema causado por alguém. A punição deve ser dosada e calculada na tentativa de se evitar que os mesmos problemas se repitam. Se não se pode fazer a roda da história andar no sentido contrário, deveria, então, ser possível evitar que o mesmo problema ocorresse no passo seguinte. Não é necessário dizer ao leitor que é difícil se ver iniciativas nesta direção.
{ Carta Maior }
Publicado em 04.07.2011
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