Areia na língua

22-09-2016a

Reprodução/’Plaza de Toros’, de Juan Jimenez y Aranda

A nova praga

por Marcos de Castro
[Reproduzido de O Globo, 16/12/2012]

Não é preciso ter assistido nem à primeira aula de Latim – no tempo em que existia em nossas escolas essa disciplina, cuja ausência foi um desastre para o aprendizado da língua portuguesa – para saber que o étimo de nosso substantivo areia é o latim arena. E, se qualquer pessoa sabe disso até por um instinto primário, é curioso, para usar um termo educado, como nossos locutores e comentaristas de futebol, debruçados sobre um gramado verde-verdinho, chamam-no de “arena”, numa impropriedade gritante.

Nero dava boas gargalhadas, num comportamento que já trazia latente a sua loucura final, quando via os cristãos enfrentando os leões na arena. Nesse caso, se havia rictus de loucura na face do imperador, pelo menos o termo era totalmente apropriado: o chão da luta dramática entre homem e fera era de areia. Está aí para prová-lo até hoje o Coliseu.

Homem e touro se enfrentavam na arena nas touradas de Madri, brutalidade da qual já não se ouve falar, graças a Deus e ao bom-senso do povo espanhol, que afinal prevaleceu. E o sangue, do toureiro ou do animal – na maior parte das vezes, de ambos -, rolava sobre a areia. Também aí, se faltava sensibilidade para promover-se o espetáculo brutal, não faltava correção linguística ao denominar-se o local como arena de touros, pois o chão, no caso, sempre foi arenoso.

Mas – ora bolas! -, se o chão é de relva verdejante, é rigorosamente impróprio chamar de “arena” nossos campos de futebol, como fazem hoje locutores e comentaristas nas transmissões de nossa televisão. O diabo é que erros infelizmente costumam se espalhar como uma peste, e nem será exagero dizer que, neste caso, o equívoco vem sendo tão contagioso como a peste negra que, em números redondos, matou 50 milhões de pessoas na Europa e na Índia no século XIV.

E nossos pobres ouvidos têm sido obrigados a aturar os nossos profissionais que transmitem espetáculos esportivos se referirem à arena daqui, à arena de lá, à arena não sei de onde. Assim, já são dezenas de arenas por esse Brasilzão. O velho linguista e filólogo mineiro Aires da Mara Machado Filho (1909-1985), a cujo livro mais conhecido peço emprestado o título deste pequeno artigo – e a cuja memória presto homenagem aqui – deve estar se revirando no túmulo diante da violência de tal impropriedade. O bom Aires era cego, ou quase isso, mas via como ninguém os crimes cometidos contra o idioma.

Impropriedade escandalosa

A nova praga começou a se espalhar a partir de Curitiba, lembra-me bem. Lá, há uma boa meia dúzia de anos, pouco mais ou menos, o estádio do Atlético Paranaense, em sua reinauguração, se não estou enganado, começou a ser chamado de “Arena da Baixada”. Não sei que Baixada é essa, mas sei que a falta de espírito crítico leva as pessoas a repetirem bobagens sem qualquer raciocínio. Assim, o rastilho, aceso na capital do Paraná, espalhou-se por todo o Brasil. Agora parece que querem banir em definitivo o bom e velho termo estádio, na Grécia antiga apenas uma medida de comprimento, mas que evoluiu até seu sentido atual sem dar saltos, como recomendam a natureza e o caminho normal da evolução semântica.

Insensíveis a esse longo caminho percorrido pela palavra estádio em sua evolução serena, parece que agora querem bani-la em definitivo do nosso léxico.

Recentemente, o tão tradicional Estádio Independência, do simpático América mineiro, foi reinaugurado depois de uma ampla reforma. Mudou-se quase tudo e, nessa ânsia de mudar por mudar, o nome antigo foi de cambulhada: agora é “Arena Independência” como, não sem um certo desencanto, quem está na arquibancada (ou vendo pela TV) pode ler no teto do espaço dos reservas.

É arena de cá, arena de lá, arenas pululam por todo o Brasil. O verbo aí usado é muito adequado, a começar pela reiteração sonora das sílabas. A denominação “arena”, carregando sua escandalosa impropriedade semântica, tem se repetido como doença contagiosa de Norte a Sul. Espera-se porém, de mãos postas, que o nosso Maracanã, templo do futebol no Brasil, ao ser reinaugurado no ano cuja entrada estamos na bica para comemorar, não nos dê o vexame – que seria lamentável, para não dizer criminoso – nem o desgosto de reabrir como Arena Maracanã. Credo em Cruz, diziam os antigos, benzendo-se. E nós repetimos, cruzando os dedos.

{ Observatório da Imprensa }

Publicado em 21.12.2012

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