O fundamental segue intacto


| Brasil de Fato |

79 anos de Alí Primera, o cantor do povo venezuelano

Brasil de Fato conversou com Sandino Primera, filho do cantor venezuelano, para recordar a obra de Alí

por Michele de Mello

Neste sábado (31), Ely Rafael Primera Rossell, mais conhecido como Alí Primera, completaria 79 anos se estivesse vivo. Com sua arte, o cantor do povo venezuelano é um dos artistas mais reconhecidos da música folclórica venezuelana e além de retratar as belezas do seu país usou seu canto para denunciar injustiças e alentar um mundo novo.

Nascido no caribe venezuelano, na cidade de Coro, Estado Falcón, Alí perdeu o pai, Antonio Primera, aos três anos de idade. De origem humilde, junto aos seus dois irmãos, desde criança ajudava sua mãe, Carmen Adela Rossell, a sustentar a casa, trabalhando como engraxate e até boxeador.

Com seu padrasto, José Padilha, aprendeu a tocar o Cuatro (instrumento de cordas venezuelano) e começou sua relação com as músicas.

Aos 18 anos foi viver em Caracas, onde pode finalizar os estudos básicos e ingressar na faculdade de química da Universidade Central da Venezuela (UCV). No período universitário se encontrou com a política, entrou para as fileiras da Juventude Comunista da Venezuela (JCV), foi um dos fundadores do Movimento Ao Socialismo (MAS) e começou a compor.

Pelo vínculo com o Partido Comunista, chegou a estudar engenharia do petróleo por quatro anos, aspirando trabalhar na indústria petroleira venezuelana, na Romênia, quando o país fazia parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

No entanto, abandonou os estudos e voltou para cantar a vida do seu povo.

Sua música esteve aliada à luta comunista. Fazia da arte sua arma de protesto e conscientização.

Além de retratar seu amor pela pátria de origem, também denunciava as desigualdades de um país petroleiro, aprofundadas durante os governos do chamado Pacto de Punto Fijo, um sistema bipartidarista implementado em 1958 pelos partidos Ação Democrática e União Republicana Democrática.

De maneira clandestina, com ajuda financeira do partido comunista venezuelano, lançou seus dois primeiros álbuns “Vamos gente de mi tierra” (1968) e “Canciones de Protesta” (1969). Ambos serão relançados nesse aniversário pela Fundação Alí Primera. Sua discografia completa conta com 13 discos e o último “Por Si No Lo Sabia” foi lançado dez anos após o seu falecimento, em 1986, por seu irmão José Montecano.

Em 2019, quando completaram 34 anos da morte do cantor do povo, foi criada a Fundação Alí Primera para resguardar documentos e manter viva sua arte.

Neste ano, para celebrar o aniversário de Alí, também lançaram a campanha “Vamos a tu encuentro” coletando fotografias, lembranças e anedotas dos venezuelanos sobre o cantor.

Ainda neste sábado (31) farão um show em homenagem aos 79 anos de Alí, na Casa Museu, em Paraguaná, Estado Falcón, com apresentações de seus irmãos José Montencano, Mireya Padilla Rossell e Elis Padilla Rossell, além de outros familiares e amigos.

“Alí nos convocou a ir ao encontro de Bolívar e nós, nesta oportunidade, sairemos ao encontro de Alí que guardam seus familiares, amigos, companheiros e companheiras de luta para ver a Pátria liberada”, afirmou Sandino Márquez, coordenador de pesquisas da Fundação Alí Primera.

Alí faleceu em um acidente de carro em 16 de fevereiro de 1985.

O Brasil de Fato conversou com Sandino Primera, cantor, compositor e um dos sete filhos de Alí Primera para recordar sua história e obra.

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Brasil de Fato: O que você leva de mais forte do legado de Alí Primera?

Sandino Primera: Me identifico muito com a visão de Alí. Ele era militante de um partido revolucionário, no início usava sua habilidade artística para serenatas, para falar de amor, para festejar, em seguida, depois que foi preso, veio a canção política.

Por sua capacidade e sensibilidade para associar a realidade com o que acontecia, foi um militante destacado.

Ver que ele destinou suas capacidades humanas na busca por fortalecer o movimento independentista venezuelano acredito que é o mais contundente, é um pilar.

Essa luta para mim é fundamental, porque segue sendo a condição do nosso território venezuelano e latino-americano.

Não devemos nos conformar, senão localizar-nos no nosso tempo e buscar fazer o melhor possível no nosso tempo. Alí fez isso.

É o que diz Galeano sobre o fogo. Não necessariamente porque uma pessoa é filha do Che Guevara, Lula, Chávez, Fidel, fará a revolução. Cada um tem seu fogo e seu momento. Ninguém é obrigado pela origem. Cada quem terá seu tempo e espaço.

BdF: Quais são as lembranças mais vivas da sua relação com Alí?

SP: As cócegas que sua barba fazia quando me beijava. Também vê-lo chegar à noite em casa, quando tudo estava escuro e ele chegava.

E o abraço, seu cheiro. Eu sempre queria estar com ele, sempre queria carinho e ele era muito paciente.

Temos gravações dele ensaiando, enquanto eu chegava e dava pra escutar minha mãe discutindo comigo, Alí me agarrava e tinha uma paciência surpreendente.

BdF: Qual é a sua primeira lembrança com a música?

SP: Eu brincava com Alí com as canções. A música “El Lunerito” nós não pudemos concluir, porque ele faleceu em 1985, quando estava fazendo um disco que se chamava “Por Si No Lo Sabia”, nesse disco está essa canção composta pelos dois, a partir de uma brincadeira nossa ele criou a canção.

Fazer música sempre era uma brincadeira para nós, para todos meus irmãos. Sempre fazíamos canções sobre o que nos rodeava e crescemos num ambiente muito politizado. Tínhamos à mão livros sobre o processo nicaraguense, salvadorenho, brasileiro, porto-riquenho, vietnamita, chinês, soviético. Líamos isso e compúnhamos a partir daí. Fizemos músicas para Sandino, Allende, Víctor Jara.

BdF: O disco “Por Si No Lo Sabia” foi lançado postumamente por seu tio. Você e sua família pensam em relançar outros discos de Alí?

SP: Sim, são planos em desenvolvimento, inclusive de gravar composições dele. Nós gravamos o disco “De Primera a Primera”, que teve uma boa recepção. Para nós foi um reencontro das novas gerações com Alí, que o receberam de maneira maravilhosa. As pessoas se identificaram, viram Alí de outra maneira.

Estamos pensando em gravar algo entre todos, porque esse disco gravamos apenas quatro dos seus filhos.

Nós seguimos num processo de encontro com Alí. Não só de imagens, senão de escritos. O que nos fez ver tudo: nossas misérias, nossas virtudes, nossas capacidades e incoerências. Encontramos um Alí muito terrenal, o que nos fez sentir mais próximos dele.

Além de filho biológico, sou um filho ideológico. Ainda há muito de Alí para descobrir.

BdF: Em que momento você decide se aproximar da política?

SP: Eu era morno. Achava que a política separava as pessoas. Foi Chávez, definitivamente. Em 2006 todo esse movimento que desatou Chávez nos fez entender muitas coisas, dar o correto valor a outras, colocar tudo no seu devido lugar. A partir daí eu comecei a compor de outra forma.

BdF: Como a música contribuiu e influencia em um processo revolucionário como o venezuelano?

SP: A música tem muito poder. Se a música consegue fazer com que as pessoas pensem outras coisas já é uma vitória, uma conquista.

Há pouco lançamos uma canção que se chama “La Fea Arte”, em que falamos da questão cultural, num ritmo calipso, que é um ritmo para dançar. As canções sociais às vezes parecem ter um tom melancólico, de violão sozinho, como se a canção social não pudesse ser para dançar.

Em algum momento essa foi uma contradição para aqueles que defendiam uma visão mais ortodoxa.

Nós acreditamos que a canção que aspira a uma elevação de consciência humana tem essa capacidade.

BdF: Uma canção revolucionária triste seria uma contradição na Venezuela, que é um país tão alegre.

SP: Totalmente e, no entanto, a música mais conhecida de Alí é “Techos de Cartón”, que dá vontade de chorar, porque fala de uma realidade que permanece. Por isso, a música de Alí segue vigente, porque o centro do problema segue vigente.

Uma canção que busque penetrar o pensamento, os corações, que fale de maneira simples, estamos convencidos que essa sim é a canção necessária.

BdF: Como manter viva a lembrança de Alí, sua arte e o que ele representa?

SP: Como eu dizia, o fundamental segue intacto. Para realçar a obra de Alí eu acho que devemos sempre destacar que tudo foi feito por um ser humano, não por um ser divino.

A forma mais simples de defendê-lo é humanizando-o. Não sermos coerentes com o que dizemos e fazemos. Temos contradições todos, mas não podemos falar de um mundo melhor e falar de maneira prepotente, soberba, devemos buscar uma harmonia.

Essa é a forma que creio que podemos proteger a obra de Alí, no aspecto político-ideológico e criativo-musical.

Edição: Daniel Lamir

{ Brasil de Fato }

. Vídeo:
“Sandino Primera canta Alí Primera”

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