Uma multidão embranquecida

Reprodução/www

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“Arena” do Maracanã: um novo não lugar

por Rodolpho Motta Lima

Nos últimos anos, e apesar dos choros das hienas de sempre, o Brasil vem experimentado repetidas conquistas, materializadas nas vitórias contra a miséria, a exclusão e o preconceito que historicamente têm dividido os brasileiros. A comprovação corre por conta das diversas análises comparativas que se queira fazer entre os últimos governos (Lula e Dilma) e aqueles que os antecederam, do ponto de vista da execução de projetos sociais.

Isso não inibe, porém, o reconhecimento do muito que ainda há por fazer, ou mesmo daquilo que, já feito, não deve merecer aplausos.

Alguns, como eu, experimentam grande desconforto diante do verdadeiro oba-oba nacional que se está produzindo em função da Copa do Mundo. Não aceito, por exemplo, o “slogan” federal que nos coloca como a “pátria de chuteiras”, uma concepção que semeia uma reprovável alienação e, como em outros tempos, elege o “circo” como fundamental. Se queremos incentivar comemorações com o verde-amarelo, prefiro que seja a cada vez que superarmos um índice de pobreza, a cada vez que eliminarmos um preconceito, a cada vez que batermos recordes de superação da mortandade infantil e do desemprego, a cada vez que inaugurarmos um novo poço de petróleo, a cada vez que reduzirmos os atos de desmatamento.

Antes que os urubus e golpistas de plantão tentem se apropriar dessas palavras a serviço de um pensamento de oposição, menciono os exemplos acima justamente para enfatizar os muitos outros trunfos de que o Governo dispõe para convocar o povo a celebrar nas ruas os seus verdadeiros êxitos na luta pela redução das desigualdades que maculam o país.

Não dá para considerar entre eles esse festival de construção de estádios superfaturados, no âmbito de governos estaduais, esses rapapés de submissão aos homens da FIFA interessados tão somente na rentabilidade do seu negócio, esse destaque de pessoas como o atual presidente da CBF, com seu passado político que em nada o valoriza.

Como carioca que frequentou muito tempo o Maracanã, vejo com profunda tristeza a sua transformação. Usando-se como desculpa as imposições da modernidade, produziu-se, de fato, um golpe na identidade cultural de nossa cidade, levado a cabo, além de tudo, com fortes suspeitas de irregularidades. Alguns jornalistas esportivos da ESPN – e cito por justiça Lúcio de Castro e Mauro Cézar Pereira, além do próprio José Trajano, que chefia a equipe – vêm sendo vozes isoladas, contrapondo-se a outras, as dos servidores de uma mídia interessada nos rendosos negócios à custa da paixão nacional, que glorificam a beleza das novas praças, em postura que, passando convenientemente por cima de todos as maracutaias denunciadas, pisoteiam a sua própria profissão. O pessoal da ESPN, entre outras incorreções que cercaram a “construção” da nova arena (sic), destaca um inaceitável descumprimento legal, já que as marquises do antigo estádio eram tombadas como um bem cultural e, portanto, não passíveis de demolição.

Em artigo anterior, lembro-me de ter manifestado o temor de que, depois das construções das novas praças, viria a elitização e a exclusão do povão, imposta pela ganância capitalista dos seus novos exploradores (nos dois sentidos). O jogo entre Brasil e Inglaterra só fez robustecer essa tese. Uma multidão “embranquecida” de não frequentadores habituais do Maracanã – que puderam pagar os preços exorbitantes então cobrados – ocupou as cadeiras do estádio, deixando claro que ainda falta muito para superarmos as enormes barreiras das diferenças sociais a da consequente discriminação.

Um etnólogo francês criou o conceito do “não lugar”, vinculado a certos espaços capazes de provocar nas pessoas uma sensação de estranhamento, de não identificação. Estariam compreendidos nessa categoria os aeroportos, os shoppings, os supermercados. Estar em um espaço desses seria estar em qualquer lugar e, por extensão, em lugar nenhum. A padronização desses locais apenas faz acentuar esse sentimento de não pertencimento.

Fazendo uma adaptação pessoal desse conceito, penso que o Maracanã corre o risco de transformar-se em um não lugar, pela perda de sua identidade original que poderá vir a fazer dele o cenário para “espetáculos” que sirvam de deleite restrito a uma plateia seletiva, amorfa e passiva. Preços proibitivos, em cenários ilusórios de exclusão sob aparência de liberdade, seriam, então, as ferramentas para que o lugar que já foi o espaço do “povão” venha a ser simplesmente mais um não lugar…

A simples denominação de “arenas” para a mesmice arquitetônica dos nossos novos estádios de futebol – mais uma dessas infelicidades semânticas que um certo colonialismo cultural nos impõe – já descaracteriza esses lugares, conferindo-lhes diversas outras finalidades igualmente lucrativas. O melhor dos mundos para os ganhadores das concessões: o dinheiro público constrói, a iniciativa particular desfruta e lucra…

Penso que, passada a Copa das Confederações, todos teremos condições de verificar, nos jogos do campeonato nacional, se esse pouco disfarçado movimento de ocupação elitista estará realmente se configurando. Se estiver, as consciências maduras deste país terão de exigir, aos poderes públicos das diversas esferas, medidas efetivas que possibilitem a devolução desses espaços ao povo e a sua participação nos estádios com a espontânea alegria de sempre, que, certamente, não se confunde com a torcida nos sofás das casas da apregoada classe “C”, para a qual os detentores da exclusividade de transmissão – outra excrescência – talvez pretendam vender, como “compensação”, mais e mais pacotes da TV…

{ Direto da Redação }

Publicado em 17.06.2013

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