“Tudo eu jogo nesta foto!”


| Reprodução/NPC |

“Na minha geração ninguém vai poder falar que o negro não tem memória, eu vou fazer essa memória”

por Euro Mascarenhas/NPC

Ao longo dos mais de 40 anos de carreira, o fotógrafo Januário Garcia baseou os seus registros da população negra em três eixos fundamentais: “construção de cidadania plena, desenvolvimento da autoestima e resgate da dignidade”. É através desses pilares que ele exercita o seu olhar e, no que depender do seu trabalho, ele afirma:

– “Na minha geração, ninguém vai poder falar que o negro não tem memória, porque vai ter. Eu vou fazer essa memória!”

Início da trajetória

A fotografia entrou na vida de Januário bem cedo. Ele conta que aos 7 anos, a partir de uma revista infantil, aprendeu a fazer um projetor de imagens. “Eu me interessei em fazer esse projetor, que era uma caixa de madeira em que se instalava uma lâmpada comum e havia um furinho na frente para a gente colocar o negativo e projetar numa parede”, explica.

Januário lembra de um cinema que havia próximo de sua casa, no bairro de Santa Teresa, em Belo Horizonte. Ele conta que todas as manhãs ia para a porta do cinema, onde recolhia pedaços de filmes descartados após a noite de exibição. O material era usado nas projeções que realizava em sua casa para os colegas da rua, que tinham que pagar para assistir. “Eu projetava numa parede branca em casa, e os meninos da rua tudo vinham ver. A Rosa, minha irmã, ficava tomando conta do portão, porque tinham que pagar para assistir. Mas pagava-se com fruta, goiaba, um jambo, uma manga, ou até uma perereca”, afirma aos risos.

Desta forma, a imagem entrou na vida de Januário para nunca mais sair. O desejo de ser fotógrafo o levou a estudar História da Arte e Inglês. Ele explica que antigamente os filmes fotográficos eram todos importados e a maioria dos fotógrafos precisavam revelar seus trabalhos em estúdios pessoais, “e todos os filmes vinham com uma bula em inglês orientando o processo de revelação. Então tínhamos que saber inglês”, comenta.

Um momento fundamental na carreira de Januário Garcia foi o encontro com o fotógrafo George Racz, que o chamou para ser assistente. Isto foi motivo de orgulho para Januário: “A importância que ele tinha como fotógrafo e me chamar para ser assistente dele foi uma coisa fabulosa na minha vida!”, afirma.

Mais tarde, Racz convida Januário para substituí-lo como professor no curso de Fotografia no Museu de Arte Moderna do Rio. Este convite também foi outro ponto importante em seu caminho, pois foi aí que teve contato com José Ricardo de Almeida, seu aluno do curso, que o faria conhecer o movimento negro. “Por eu estudar Inglês, eu acompanhava as lutas pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. Eu comprava uma revista chamada Ebony, e o José Ricardo viu em cima da mesa essa revista e pediu para folhear. E esse número era dedicado ao Malcom X e Luther King!”, lembra Januário.

José Ricardo então convida o professor para os encontros de jovens negros que ocorriam na Universidade Cândido Mendes em Ipanema, sempre às tardes de sábado. Ao ter contato com o grupo pela primeira vez, Januário sentiu que estava diante de algo histórico, que não sabia onde iria dar. “A minha contribuição foi começar a fotografar a partir da reunião seguinte”, declara.

Dessa época em diante, Januário não parou de fotografar. Segundo calcula, existe hoje um conjunto de quase 40 mil imagens em seu acervo, um trabalho que rompeu as fronteiras do Brasil. “Eu fui fazer negros na África, eu fui fazer negros em Israel, eu fui fazer negros na Europa. Então a coisa virou diaspórica, o trabalho virou diaspórico, mas o básico dele é Brasil”, explica o fotógrafo.

Instituto Januário Garcia

Atualmente, Januário tem se dedicado em construir o instituto que levará o seu nome, a ideia vem da necessidade de dar uma destinação a sua obra. “Acontece que eu tenho uma experiência de vida: de vários outros fotógrafos que eu conheci, que tinham bons acervos de fotografia e morreram, e as fotos se perderam. As famílias de muitos deles não seguiram o padrão que deveriam de preservação”, conta.

Com a criação do Instituto Januário Garcia, o fotógrafo preservará o seu trabalho, assim como a memória do movimento negro de seu tempo. O acervo ficará à disposição do público em geral para uso e pesquisas.

Januário tem levantado recursos através de financiamento coletivo. Em um primeiro momento ele deseja montar um site para que as fotos sejam disponibilizadas gratuitamente. Uma página na rede digital Instagram também terá o mesmo intuito.

O Instituto Januário Garcia também se colocará à disposição de outros profissionais que queiram preservar seus trabalhos. Mas acima de tudo, ele quer ter como tema central a questão da diáspora do povo negro ao redor do mundo. “Então o instituto está voltado para esse tipo de documentação, para esse tipo de fotografia, para que ele possa ampliar, da melhor maneira possível, a nossa base de conhecimento da sociedade brasileira sobre nós, negros, dos quais ela quase nada sabe”, afirma.

Fotógrafo dos artistas

Uma parte importante da carreira de Januário Garcia são as capas de disco que fez para grandes artistas da música brasileira, entre eles estão: Belchior, Caetano Veloso, Leci Brandão, Raul Seixas e Tom Jobim. Sobre esse processo de criação, o fotógrafo explica: “a capa de disco, a gente tem que entender que ela é uma embalagem, e sendo uma embalagem a gente tem de procurar construí-la de uma maneira diferenciada daquilo que já existe”.

Na concepção das capas de disco, Januário expõe que um ponto de partida interessante é considerar que, para o artista, o disco em questão é sempre o melhor trabalho dele; além de levar em conta o estilo do músico, “você vai vendo, na medida que o disco está sendo gravado, o caminho que está tomando, se é mais acústico, se é mais grave, se é mais aberto, se é mais fechado, a linha de música que o artista está conduzindo… Tudo isso são valores que você vai agregando à sua criação”, comenta.

Tal fórmula rendeu a Januário capas icônicas de discos antológicos, como “Alucinação” de Belchior: “Esse disco ia se chamar ‘Como Nossos Pais’. Quando eu o ouvi cantando ‘Alucinação’, eu prestei bem atenção e depois eu pedi a ele: – ‘Cadê essa letra?’ – ‘Ah, ela tá aqui em cima’. Aí, eu li e eu percebi que a letra era uma série de fragmentos fotográficos interessantes”, conta Januário.

Esta era a capa do disco que o fotógrafo procurava. Tanto Belchior como o produtor compraram a ideia, ao ponto de o nome do álbum ser rebatizado. “Aí, eu fiz uma capa alucinante!”, comenta Januário aos risos.

Outro episódio interessante se deu na confecção da capa do disco Urubu de Tom Jobim. A espécie que o maestro se referia era um tipo diferente, “não era um urubu normal, ele escolheu o urubu Camiranga”. A escolha exótica fez com que o fotógrafo saísse em uma interminável caça ao animal.

Aos novos fotógrafos

Na etapa final do programa, Januário foi questionado se tem uma foto que considerava a mais importante para ele, ao que respondeu: “Todo dia eu acordo pensando em fazer a grande foto da minha vida, por isso que eu não deixo de fotografar, porque eu ainda não consegui isso”. Tal motivação é o que mantém o profissional de 77 anos na ativa.

Em mensagem para os novos fotógrafos, Januário ensina que “uma fotografia tem que conter os livros que o fotógrafo costuma ler, as músicas que ele ouve, os filmes que ele assiste, as exposições de arte que ele frequenta”.

Januário também faz uma ressalva importante, ele cita Machado de Assis e Lima Barreto como autores que dão ótimas lições para os fotógrafos. Segundo ele, Machado faz a melhor descrição sobre a fotografia, e Barreto é para aqueles que querem aperfeiçoar a noção de detalhes, volume, espaço e equilíbrio. “São os dois escritores, que se você ler, você vai ver como a sua fotografia melhora. Leia Machado de Assis, leia Lima Barreto”, completa.

{ Núcleo Piratininga de Comunicação – NPC }


| NPC Núcleo Piratininga |

  Januário Garcia no programa “Quintas Resistentes”.

Gabriela Gomes;
Amanda Soares;
Jéssica Santos.

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