Solidariedade cítrica

Reprodução/www

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O catador de laranjas

por Rui Martins

Era sábado e como precisava comprar algo especial para o aniversário de minha caçula fui ao supermercado do centro de Berna. Lá, aproveitei uma oferta de laranjas, já que, com o hábito de um suco natural toda manhã, o consumo dessa fruta é constante em casa.

Comprei logo uma sacola de três quilos e como o carro tinha ficado longe (graças aos ecologistas não há mais estacionamentos no centro da cidade) vim com minhas compras pela rua principal, as duas mãos ocupadas com as provisões. Mesmo assim, no caminho ainda inventei de passar numa loja para satisfazer o pedido da outra filha, que se queixara da falta de tinta preta na impressora.

Ao descer as escadas da loja de produtos eletrônicos, onde fui atendido por uma emigrante portuguesa, senti que a sacola das laranjas dava sinais de poder arrebentar. O jeito era andar sem balançar as frutas, mas não me preocupei, mais duzentos metros e chegaria ao carro.

Prosseguia satisfeito meu caminho, tinha comigo um belo pedaço de salmão, um pouco de camarões e o jantar de aniversário prometia ser dos melhores. Apenas meus dedos pareciam se cortar com a alça fina dos sacos plásticos com o peixe, as batatas, o pão e mais algumas coisas das quais já não me lembro, porém pesadas. E a sacola com os três quilos de laranja, ameaçando estourar.

Diante da estação, o semáforo vermelho me fez parar. Aproveitei para enrolar as alças finas dos sacos plásticos com lenço de papel e assim evitar a sensação de me cortarem os dedos. Abriu o sinal, apressei o passo e ali, no meio da rua, larga e movimentada, aconteceu o previsível mas, mesmo assim, inesperado – estourou o saco das laranjas e em alguns segundos corriam laranjas para todos os lados.

Resmunguei um palavrão e só consegui pegar três laranjas. Tinha de continuar andando porque o sinal ia mudar, porém vi que outras pessoas também se abaixavam para pegar as frutas. Lá se foi minha economia, pensei, dos três quilos não teria nem meio quilo.

Mas ao chegar à calçada vi que havia algumas pessoas me esperando com laranjas nas mãos. Abri o saco meio vazio onde estava um pão ainda meio quente e diversas mãos ali despejaram minhas frutas que haviam tentado fugir e escapar ao destino de todas laranjas – virar suco, ser chupada ou comida em gomos.

Enquanto dizia “merci, merci”, palavra francesa bem conhecida, para agradecer, olhei para trás na rua – não havia nenhuma destinada ao esmagamento pelos carros que começam a passar. Os três quilos cítricos estavam de novo comigo.

Essa coisa tão simples me encheu de uma grande alegria e pensei comigo, isso tem um nome – solidariedade. Se no meio da rua, com sinal que vai mudar, desconhecidos me ajudar a catar as laranjas despencadas de uma sacola rompida, sem que eu sequer pedisse, é porque existe entre nós, humanos, atos instintivos de solidariedade. E se existem no mínimo, devem também haver nas coisas maiores.

Foi como se naquela tarde nublada de sábado, no corre-corre do comércio que vai fechar, houvesse uma réstia de sol, rápida, só para dizer no fundo, no fundo, todos nós egoístas, apressados, estressados, depressivos, tantas vezes desesperançados, somos ou podemos ser solidários. E me veio uma tremenda fé no futuro da nossa humanidade.

Um bom humor, um sopro de alegria que não se estancou nem quando, ao chegar ao meu carro, num dos raros estacionamentos – o dos Correios – vi a multa por ter passado do curto espaço de tempo ali permitido. Com certeza para colocar cartas, não para fazer compras.

Direto da Redação }

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