Que nos arranque do torpor, da apatia

20-04-2016a

Para um novo ano do Jornalismo Literário

por Urariano Mota

Nesse 31 de agosto, completa 66 anos o gênero de texto que se convencionou chamar de Jornalismo Literário. Informa a Wikipedia que o “seu nascimento é creditado por volta de 1946, quando a edição da revista The New Yorker, de 31 de agosto de 1946, dedicou toda a edição para publicar o que se tornaria uma das principais referências em jornalismo literário: ‘Hiroshima, de John Hersey’”. E mais diz: “um artigo da revista da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação) mostrou o resultado de uma pesquisa com leitores. A mesma notícia foi exibida de quatro formas diferentes. Quando perguntados qual daquelas escritas eles mais gostaram, em primeiro lugar ficou o Jornalismo Literário, em último, o lead”.

As informações da Wikipedia vêm assim, meio sobre o estilo truncado. Mas boa de registro ela é, porque dão mote e nos salva do sufoco de mais uma coluna. E por isso anoto a seguir duas ou três coisas.

Bem antes do “Jornalismo Literário” se reconhecia que um texto jornalístico poderia  ser grávido de poesia, e de tal maneira que não se encontrava em muitos poemas. Mas já então havia a pergunta, em trabalhos acadêmicos: – Esses textos, grávidos de poesia, seriam ainda assim um texto jornalístico? Claro, como gênero, são poesia. Como meio, como mensagem publicada, são jornalismo, mas de uma qualidade rara, e tão rara que somente mantêm o vínculo com o jornalismo pela referência objetiva com o mundo. (O que é, reconhecemos, essa “referência objetiva com o mundo”, um outro dado complicador, pois nesses casos, de textos poéticos, há uma miscigenação do objetivo e do subjetivo de tal modo que impossível é dizer em que proporções).

O exemplo sempre levantado, quando se fala da diferença entre escritor e repórter, é o de Truman Capote com o livro “A sangue frio”. Lembra-se isso como quem joga uma carta decisiva sobre a mesa, como quem dá um golpe que é um nocaute, como quem arremete um míssil certeiro sobre o avião inimigo, como quem desmascara um cego porque este viu o azul do céu de Pernambuco. “E então, que me dizes? Eis uma reportagem que é ao mesmo tempo um relato de excelência literária”. O que não dizem, e é deixado de lado, oculto, como se fosse uma coisa menor, é que Truman Capote levou pelo menos 5 anos para escrever essa reportagem! E isso é um tempo impossível de se alcançar nas redações dos jornais, que escrevem sobre o agora com o advérbio ontem.

Ou seja, os textos nos jornais e revistas vêm à luz com um imediatismo deslumbrante. Fala-se até, como um grau de excelência da reportagem, num “tempo real”: o leitor ouve, lê e olha a notícia no mesmo instante em que o repórter pensa em abrir a boca. Mais rápido que um fast news. Uma impaciência que não espera nem as ondas emitidas pelos satélites. E que deseja enfim um instantâneo que não pode esperar sequer pelo tempo da velocidade da luz. Ora, como dizer então que “A sangue frio” é uma reportagem? Pelo tempo de maturação, de pesquisa, pela qualidade, pelos personagens, seguramente não é. Ah, sim, fala-se em reportagem porque esse esse livro é um relato de um mundo real, de pessoas reais, de um crime real, de um fato de carne e sangue concretos de uma cidadezinha dos Estados Unidos. Pelo vínculo objetivo com o mundo objetivo numa relação objetiva.

Toda essa objetividade é mentirosa. Os fatos são objetivos, sim. Mas por mais contundentes, os fatos não falam por si, pelo menos não falam com eloquência, com uma voz que nos arranque do torpor, da apatia. Os fatos falam quando organizados, de uma certa perspectiva vistos, por um olho humano selecionados, mastigados, ruminados, gozados, sofridos – numa palavra, quando falam a verdade da viva experiência. “Os Sertões” de Euclides da Cunha nasceram como uma reportagem, mas seu produto final, o livro épico da desgraça nordestina, se fez maior que uma reportagem. “Canudos não se rendeu… caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.”

Isso não é objetivo, por maior verdade que fale e expresse. Isso é imagem subjetiva, voz de um escritor parcial, com parcialidade escrita, porque indignada contra o massacre de uma gente rude, que desejava o céu na terra. Canudos não é uma ficção, infelizmente é um fato real, um massacre objetivo. Mas é literatura, porque é narrado com vigor, maestria e paixão, somente abaixo da grandeza da injustiça que narra.

Seria possível na pressa e na prensa do Jornal Nacional?

Direto da Redação }

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