Um mundo very Nice

29-06-2015b

O ano tinha começado, vários meses de 2009 ficaram para trás… Muitas aranhas, corvos, caveiras, morcegos e tantos outros ornamentos pouco usuais para um calendário compunham os ambientes dos personagens de “O Mundo Ilustrado de Nice”, ou em versão francófona, “Le Monde Illustré de Nice”. Ao lado do computador, entre atividades de trabalho e diversão, eram percebidos mês a mês, só que a relativa indiferença à cronologia deu lugar à atenção plena: claro, quem são os pequenos mórbidos do mundo de uma tal Nice?

Sem oncinhas pintadas, zebrinhas listradas e coelhinhos peludos, mas com ‘A Menina dos Olhos Grudados’, ‘As Irmãs Xifópagas’, ‘O Menino Retalhado’ e outras criações saíram do anonimato, prevaleceram sobre perguntas como, digamos, “23 de maio cairá em que dia?”, ou “o feriadão (no Brasil são vários!) vai ser no segundo final de semana de abril?”. Mais que isso, por causa dos ilustres desconhecidos, as indagações foram transformadas em “qual foi o mês daquele garoto com a carinha cheia de ferimentos e um touro em segundo plano?”, ou “aquela garotinha ruiva, com sangue a escorrer num canto da boca, está em agosto?”.

Antes de terminar o primeiro semestre, o calendário foi folheado até o final e lá estavam as coordenadas para Nice Lopes, a dona do traço e criadora desta moçada diferente. O sítio, na verdade um blog (link ao final desta página), serve de portfólio virtual para Lopes apresentar a sua face “illustrator”. Antes de conhecer novos prováveis habitantes do seu mundo, no logotipo mais surpresa, uma garota tatuada, olhos verdes, até aí tudo normal, mas com a boca sangrando. E uma bela folha de antúrio – redundância – lacrimejando sangue… Glóbulos vermelhos do lado de cá do monitor também!

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Depois da turminha docemente macabra, nos primeiros e-mails trocados a história que temos em comum sobre o antúrio – nossas mães o cultivaram, por que a planta estava em destaque? Segundo a autora, estas aráceas fizeram parte da sua infância, porém, não sobreviveram ao falecimento da sua genitora, nada mais que quem as cultivava. Pronto, depois da poética, tudo despertou curiosidade sobre os companheiros de ‘Silvânia, A Menina Vampiro’. Onde busca inspirações? Quais os outros trabalhos feitos por ela?

O jeito foi continuarmos a conversa, e não demorou para surgir a ideia de compormos algo que chegasse a novas pessoas. Neste papo, cada indagação feita e resposta devolvida expandiu tanto que livro surgiu como recomendação – não sabia do Tim Burton escritor -, histórias de infância no interior do Brasil foram rememoradas, os trabalhos ‘comerciais’ da desenhista entraram na prosa… Através destes últimos, tornou-se possível saber que os traços de Ms. Lopes são tão interessantes que também “não deformam, não têm cheiro e não soltam as tiras”! Em relação ao motivo que deu asas aos contatos, qual não foi a surpresa quando soube que as mesmas mãos escreveram contos para os habitantes do calendário? Na discrição que as inspira, eles estão num só link em .pdf, disperso entre os zilhões publicados no ciberespaço, uma arca encontrável com boa vontade e o mapa do tesouro na ponta do mouse.

Aprendida a lição, que nem era estranha, mas mesmo vacinado, o cotidiano às vezes nos embarca num túnel a vácuo que os 85% artísticos e autorais perdem a atenção para uma faixa de 10% da página que contém a inexorável – e por vezes pouco ilustrada – soma dos dias.

Cabe mais um personagem neste mundo aí?

29-06-2015d

Falei com ela sobre o acervo que dá vida ao calendário de 2009, inicialmente. Inicialmente, pois a conversa foi para lados envolventes de criação, o que se espera de um autor. No caso, uma autora…

Ao final, tanto o blog/portfólio quanto um especialíssimo e exclusivo material – os desenhos e os contos que compõem “O Mundo Ilustrado de Nice” – conduzirão o leitor a materializar virtualmente as anotações!

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A_Luzerna_Falas Ricardo Santos Conforme é possível ler no blog, em ‘O Mundo Ilustrado de Nice/Le Monde Illustré de Nice’, você combinou um livro do Tim Burton com as suas vivências e definiu este trabalho, sobre o qual até comentou “bem-vindo ao meu novo-velho mundo!”. Por que foi preciso expandir os seus desenhos para este lado, digamos, mais intimista e ao mesmo tempo fantástico?

A_Luzerna_Falas Nice Lopes Na verdade, não sei se a palavra “combinar” seria o termo adequado. Acho que “inspirar” seria a palavra ideal, afinal, foi uma das obras literárias de Tim Burton que serviu de estímulo para eu construir minhas próprias histórias ilustradas.

Edgar Allan Poe e o próprio Burton sempre foram influências marcantes em minha vida. Lembro-me que, aos 10 anos, tive a oportunidade de ler a biografia de Edgar Allan Poe, por culpa do meu pai, que havia recém-adquirido uma dessas enciclopédias vendidas de porta em porta. Ao ler a história de vida de Poe, deparei-me com um homem melancólico, especial e incompreendido, como eu, naquela tenra idade, e me senti profundamente tocada. Mas, como dizer à minha mãe que havia me encantado por um escritor alcoólatra, autor de contos de terror? Acredito que Poe tenha sido meu primeiro amor platônico (risos).

Mas, somente na adolescência, talvez por uma ironia do destino, eu tenha reencontrado esse meu “amor” de infância. Uma dedicada professora de inglês, na tentativa de enriquecer suas aulas, trazia um mini-gravador e algumas fitas cassetes para nos brindar com contos de Poe, narrados por Vincent Price e majestosamente encenados como novelas de rádio. ‘The Black Cat’, ‘The Cask of Amontillado’, ‘The Mask of the Red Death’, soava como música aos meus ouvidos. E foi, também, nesta época, que conheci ‘Edward – Mãos de Tesoura’, meu primeiro contato com a obra de Tim Burton. O filme fala sobre aceitação do outro e respeito. E o que nós, pobres mortais procuramos, além de sermos aceitos, não é?

Então, tudo isto sempre esteve aqui dentro de mim, meio que escondido, com vergonha de se mostrar, com receio de “chocar” as pessoas. Eu guardava tudo, todas as influências, o lado melancólico, o lirismo, a fantasia, acredito que ocultava até de mim mesma. O termo “bem-vindo ao meu novo-velho mundo” é a tradução desta tentativa equivocada de esconder quem realmente eu sou. “Novo” para quem ainda não conhecia este meu dark side, e “velho” porque ele sempre esteve aqui.

‘O Triste Fim do Pequeno Menino Ostra e Outras Histórias’ ou ‘The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories’ (a versão em inglês é muito mais interessante, talvez por conta das “perdas” quando se faz a tradução para o português), foi o livro de Tim Burton que me serviu de inspiração. O livro é formado de pequenas histórias em verso de personagens surreais, melancólicos e que mais uma vez buscam aceitação acima de tudo. Como diria Philippe Barcinski, no prefácio do livro: “(…) Como seus personagens, este livro parece deslocado. Não se enquadra em nenhum nicho. É triste, mas engraçado. É infantil, mas adulto.”

O meu ‘Le Monde Illustré de Nice’ é uma visita à minha própria infância. É quase uma catarse. Burton foi responsável por isso e ele nem sabe (risos). Talvez todos os personagens que criei são meus alteregos, e as historietas, se não aconteceram exatamente da forma como narrei (até para conter um lado ficcional), trazem, de algum modo, um tanto da “autora”, como a rinite sempre presente, a fixação (quando criança) por insetos, os olhos grudados por causa da miopia, a perda da mãe, a união de irmãs, enfim… de certo modo, quase tudo está ali. Pode parecer clichê e talvez o seja, mas precisei tomar este caminho para me encontrar, para reencontrar aquela menina tão inquieta e cheia de dúvidas, que muitas vezes, foi sufocada… quem sabe “ela” poderia me ajudar… Por muitos anos vivi coisas que não queria, nem sabia ao certo quem era eu, talvez eu ainda não saiba direito, mas estou somente no início da procura. Eu acredito que revisitar a infância seja o melhor caminho para se descobrir.

A_Luzerna_Falas RS Então, de tudo o que você falou, o resultado são 7 personagens. Como foi tirá-los desta vivência e ofertá-los a dose necessária de ficção? Existem outros, que ficaram engavetados? Dará continuidade neste tipo de criação, e quem sabe, sair do monitor para versões impressas em livros, como o do Burton?

A_Luzerna_Falas NL Foi uma experiência muito enriquecedora. Como já disse, esses personagens já faziam parte da minha vida, o que fiz foi dar a eles um ar estranho e esquisito, que me agradasse e me comovesse. Acho que consegui (risos). ‘O Menino Retalhado’, por exemplo, surgiu depois que eu li uma matéria, em uma revista, sobre pessoas que não sentiam dor. Fiquei impressionada e atordoada ao mesmo tempo e resolvi “dar vida” a essa inquietude. Acabo me inspirando em coisas simples, fatos cotidianos, o que procuro é colocar uma lente de aumento e procurar as minúcias e os pequenos detalhes envolvidos. Como diria Machado de Assis: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. (…) Cousas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver cousas miúdas, cousas que escapam ao maior número, cousas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam”.

Tenho sim outros personagens engavetados, loucos para ganhar o mundo (risos)… e quem sabe uma versão impressa! Não que eu tenha pretensões literárias, longe disso, até porque não sou escritora, mas seria muito divertido!

A_Luzerna_Falas RS Depois de dar vazão por esta via autônoma e lírica, como fica, para a autora e para o público – leitores “convencionais” e marcas -, a mescla de conteúdo assim com o, digamos, comercial?

A_Luzerna_Falas NL Todos nós temos um trabalho, digamos “comercial”, no qual exercemos a função de “operários”, executando e tornando real o sonho de alguém. Quer queiramos ou não, de uma forma ou de outra, temos sempre que agradar a alguém, seja o patrão, o namorado, a família, o cliente. Mas é preciso dar vazão aos nossos sonhos, àquilo que nos mantém vivos, ao que se passa em nossos corações, sem compromisso de agradar ou não, a não ser nós mesmos. E, se de repente, esse trabalho contagiar outras pessoas, tanto melhor, significa que não estamos sós (risos)… Foi assim com a grife ‘Bicho Comeu’ de Solange Meneghel. Ela entrou em contato comigo fascinada pelo trabalho que viu no meu “mundo ilustrado”. Adoro quando atendo a um cliente e descubro que consegui tornar real o que se passava na cabeça dele. É desafiador e muito gratificante! Assim como é gratificante, também, ver meu trabalho “impresso” em suportes diferentes, como jóias, camisetas, revistas, sandálias e até tatuado pra sempre no corpo de alguém.

Me formei em Publicidade e Propaganda e ainda atuo na área. Mas sempre gostei de desenhar. Comecei na área de Moda, desenvolvendo estampas para algumas marcas como ‘Banca de Camisetas’ (SP), ‘Q-Vizu’ (RJ), ‘AllTracks’ (SP), ‘Sims’ (SP), ‘Hully Gully’ (SP), ‘1º Item’ (SP), ‘5ª Geração’ (SP), ‘Curta Metragem’ (MG). Ministrei aulas de Desenho de Moda no Computador, no Senac São Paulo. Mas, bacana mesmo, foi conseguir diversificar meu trabalho e atender a uma variedade de clientes e de marcas, como: ‘Ciclo das Vinhas (Escola de Vinhos)’, da somélier Alexandra Corvo; Gustavo Mar (chef de cozinha); blog ‘Seja BemVinho’, da jornalista de gastronomia Cristiana Couto; Melissa Thomé (produtora de moda e objetos); blog ‘Sopa de Letrinhas’, da jornalista de gastronomia Roberta Malta; site ‘It Girls’, da jornalista de moda Alessandra Garattoni; site ‘Dona Fita’, de Patrícia Süssekind; grife de roupas infanto-juvenis ‘Bicho Comeu’, de Solange Meneghel; Editora Livre; Havaianas (trabalho em conjunto com o estúdio Design Visions).

Meu trabalho autônomo e lírico, como você mesmo disse, ou o meu “lado B”, estará sempre presente, porque não sou apenas uma, sou várias.

A_Luzerna_Falas RS Os calendários anuais servem como os maiores condutores deste lado b? E por falar em emissão, você comentou sobre algumas aproximações que surgiram pelo blog… No que as mídias virtuais são realmente interessantes e facilitam trabalhos como o seu?

A_Luzerna_Falas NL Acredito que sim! Desde criança sempre fui fascinada por calendários. O fato de possuir um instrumento capaz de medir o tempo me deixava eufórica. Quando ganhei meu primeiro relógio, então… Aí sim, podia fragmentar o dia em horas, as horas em minutos, os minutos em segundos. Uma especialização e tanto para os meus poucos nove anos de idade.

Mas era no interior das Minas Gerais, quando íamos, eu e minha família, de férias, que me deliciava com a contagem do tempo. Lá, sem energia elétrica, o tempo podia ser medido pelo raiar do sol e pela aparição da lua que iluminava meu avô e suas sábias explicações. Meu avô, homem do campo, muito modesto em suas posses, mas rico em conhecimento, utilizava o calendário lunar em suas incursões pelo mundo dos legumes e das hortaliças. Preparava o solo, escolhia as sementes, plantava conforme a lua e suas facetas. Eu ficava encantada com tanta precisão poética. Acredito que comecei a fazer os calendários como uma forma de homenagear o Seu Aleixo (meu avô)!

Os calendários surgiram em 2007, quando decidi buscar novos clientes e mostrar meu trabalho de forma tangível. Os dois primeiros calendários registraram meus trabalhos voltados quase que exclusivamente para a área de Moda. Para o calendário de 2009, decidi fazer algo mais autoral, brincar com o lado lúdico das minhas ilustrações e colocar à mostra os personagens que faziam parte da minha vida. A inspiração para essa história você já conhece. A história do calendário de 2010 foi um resgate das antigas histórias infantis que nos embalavam em nossa fase mais feliz. Teve até promoção com a participação e sugestão dos internautas, fato que, particularmente, me deixou muito feliz, porque adoro o contato com o “público” que aprecia o meu trabalho.

O projeto dos calendários tem tudo para continuar, e quem sabe, acompanhado de novas propostas e suportes.

A maioria dos meus contatos surgiu pela internet, através do blog. A internet tem me ajudado bastante na exposição do meu trabalho. Foi por intermédio “dela” que me “candidatei” a participar do livro ‘Illustration Now 2’, da editora Taschen. Entre muitos ilustradores de diversos países, fui uma das escolhidas pelo editor Julius Wiedemann, para fazer parte da edição 2 da “Bíblia dos Ilustradores”. Nesse processo, até as redes sociais como o Twitter podem ajudar muito.

A_Luzerna_Falas RS E para concluir…

A_Luzerna_Falas NL Obrigada, Ricardo! Pela oportunidade de falar um pouco mais sobre o “meu mundo ilustrado” (risos)… Através das respostas às suas perguntas, pude conhecer um pouco mais de mim!

Na sequência, o mundo e os habitantese seus mundos.

29-06-2015e

. O Mundo Ilustrado de Nice .
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. Le Monde Illustré de Nice .
da série Obscuridades

por Nice Lopes

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O Chefe de Cozinha

Xavier quer ser Chefe de cozinha. Ele sabe muito bem a que veio e tem em mente toda a sua trajetória de sucesso. Mas o pobre Xavier sofre de rinite alérgica. Das brabas. Toda vez que ele se aventura na cozinha, seu nariz começa a escorrer e não pára mais! Na verdade, isto é um problema para Xavier! Como ser contratado por uma grande cadeia de restaurantes se, na hora H, suas narinas iniciam uma eliminação de secreção mucopurulenta? Xavier não sabe o que é pior, o nariz escorrer feito chafariz ou entupir de vez e ficar fazendo aquele barulho engraçado igual apito de chaleira. O médico japonês contratado pela mãe a peso de ouro recomenda: “- Nada quente. Nada gelado!”. Ah! Esta vida morna não agrada em nada nosso herói. Coisinhas mornas são tão sem graça. São para os velhos. E Xavier não é velho, não. Tem uma vida inteira para se surpreender e descobrir coisas. Receitas maravilhosas, sabores exóticos. Porém, isto só vai acontecer se ele conseguir se livrar da cruel rinite. Pinga uma gotinha debaixo da língua, outra no nariz. São tantas gotinhas daqui, gotinhas dali.

Quando tudo parecia perdido, uma grande notícia mudou a vida dele. Xavier foi convidado a participar de um programa de TV para mostrar seus dotes culinários ao país inteiro. Era o dia mais feliz de sua vida! Iria cozinhar uma receita deliciosa e surpreendente, sua especialidade: Pernil de Javali à Asterix com Purê de Beterrabas Assadas (eu, particularmente, detesto beterrabas e até o aconselhei a elaborar um outro acompanhamento, mas Xavier é ariano!).

Preocupado com sua performance, o menino foi ao médico e a mãe pediu uma dose maior de remédios para estancar a coriza infernal nem que fosse por um curto período. Depois da TV, seria citado nas melhores revistas de gastronomia do país e do mundo. Seu sonho tão perto de se tornar real!

Tudo ia tão bem. A apresentadora, muito simpática, o deixou à vontade na cozinha. Seu nariz estava obediente. Nem um fungado sequer, nem uma coceirinha. Xavier estava muito, muito feliz! O que poderia dar errado?

(Desculpe a interrupção, mas preciso alertar você: nunca, sob qualquer circunstância, faça este tipo de pergunta, mesmo que mentalmente. Por que o monstro-do-se-alguma-coisa-pode-dar-errado-vai-dar vive rondando, escondido, à espreita, pronto para atacar a qualquer momento. E no caso de Xavier não podia ser diferente. Xavier podia ficar quietinho, não é? Não! Quis menosprezar o poder o monstro-do-se-alguma-coisa… você já sabe o resto…)

Eis que de repente, ele começa a sentir seu nariz formigar. Um cheiro esquisito. Não sabe de onde vem. O nariz coça. Xavier espirra, tosse, lacrimeja. Nãããooooooo!!! O que está acontecendo?! Nosso herói entra em desespero e se lembra do seu grande arqui-inimigo e rival: o Homem-Mofo! Sim! Ele mesmo! Aquele mau cheiro só podia vir dele. É só o inverno chegar que o perigo se aproxima. Nos ônibus, trens, metrôs, repartições públicas, filas de bancos, programas de TV, lá está ele: o Homem-Mofo com seu casaco fétido saído de um armário qualquer. Quem o deixou entrar? Quem? E o nariz de Xavier? Ah! O nariz… Parece aumentar de tamanho e ganhar vida própria, adquirindo um tom vermelho-escarlate assombroso. Ainda mais em frente às câmeras que engordam tudo. Maldito Homem-Mofo!

Um dia, Xavier ainda vai fazer picadinho dele.

29-06-2015g

As Irmãs Xifópagas

Elas são assim desde que nasceram. Grudadas uma na outra. Elas não escolheram nascer assim. Ninguém escolhe. A da esquerda chama-se Josephine, a da direita, Claudine. Ou será o contrário? As más línguas dizem que Claudine ficou cega de um olho depois de zombar das sobrancelhas da irmã. Elas afirmam de maneira veemente que foi um acidente doméstico. E quem vai contestar. O fato é que uma depende da outra para fazer o que quer e se a outra não quer fazer aquilo que a outra quer é briga na certa. Muitas vezes as brigas são feias, muito feias. E por motivos óbvios nem adianta tentar separá-las.

Mas o que mais chateia essas duas nem de longe é o fato delas serem assim muito apegadas. O que chateia mesmo é quando elas saem à rua e a criançada fica gritando:

“- Olha lá, o circo chegou!”.

Que circo? Estão loucos? Por que não fazem esse tipo de pergunta à mulher de bigodes da banca de jornal ou ao Zé da padaria, que tem uma bunda na barriga. Faça-me o favor! Realmente isto é muito constrangedor. Mas não se preocupe, as meninas estão preparadas para qualquer tipo de acinte.

Elas têm pombos treinados. Não, não são pombos-correio, não. É como se fossem. Ai de quem as tiver provocado, ofendido ou olhado maliciosamente, mesmo que seja uma única vez. Os pombos entregam as mensagens.

Você deve estar se perguntado que tipos de mensagens esses pombos levam. É isso mesmo que você está pensando: titica. E de vários modelos: branquinha, branquinha com cinza, toda cinza, fedida, muito fedida, mais ou menos fedida, melada, pouco melada, muito melada e uma infinidade de outras. Depende muito do que a pessoa fez, quem é a pessoa e do grau de irritabilidade provocado nas irmãs. Os pombos não falham nunca. O ideal é que o alvo a ser atingido esteja vestindo roupas novas, ainda cheirando a loja. As irmãs siamesas adoram e sempre perguntam uma pra outra: “- Você está se divertindo?”.

29-06-2015h

Silvânia, a Menina Vampiro

A Menina Vampiro tem muita vergonha de ser vampiro. Não que ela considere ruim sugar o sangue alheio, longe disso. Acontece que ao atacar sua vítima incauta, Silvânia vira motivo de deboche. Imagine que ela só tem um dente incisivo superior. Isto mesmo, somente um dente incisivo quando normalmente os vampiros têm um par deles para cravar nos pescoços desavisados. Isto significa que a menina vampiro é praticamente banguela. A explicação do médico não convenceu muito aos pais: uma anomalia genética, coisa rara, como os leões albinos. Pobre menina vampiro! Mas ela não se faz de rogada, não. Impossibilitada de sorver o sumo da vida, partiu logo para outro tipo de sucção – este, bem mais elaborado, por sinal. Agora ela suga a energia, a capacidade de sonhar, os sorrisos, a confiança, a vontade de viver, o brilho nos olhos… Neste exato momento, ela pode estar aí ao seu lado…

29-06-2015i

Kléber

Certos pais mereciam ser processados pelos filhos. É o que pensa Kléber. Se ele pudesse moveria uma ação judicial contra seus próprios pais. Ninguém consegue entender o porquê de tamanha revolta. Os pais de Kléber são muito amorosos, dedicados, sempre fazem as vontades do menino. Nunca deram sequer um tapinha no bumbum dele, nem em forma de carinho (é, porque há tapinhas carinhosos no bumbum, pode acreditar). Então qual é o motivo da raiva desmedida de Kléber?

Kléber tornou-se rebelde depois que descobriu o significado do seu nome. Ele imaginava algo pomposo, como “o nobre imperador”, “o descobridor de continentes”, “o magnífico fazedor de invenções”, “El grã-duque de Sevilha”, “o eloquente contador de histórias”, “o fenomenal encantador de serpentes”, nada disso. Kléber significa “o grande colador de papel de parede”.

29-06-2015j

A Menina dos Olhos Grudados

Todos os dias a mesma coisa. Ela acorda com os olhos grudados. Força daqui, força dali e nada… Os olhos não abrem nem por reza braba, e olha que a menina já apelou pra tudo que é santo. Suas manhãs são sempre iguais. A mãe traz uma bacia de água quente, mergulha um pano limpo e vai passando com cuidado nos olhos da menina. Lentamente, os olhos vão se abrindo, como um milagre. O milagre da água quente derretendo a remela teimosa. E quanta remela naqueles olhinhos. Um dia a mãe não estava. Ninguém estava. Nem a bacia de água quente, muito menos o paninho. A menina entrou em pânico, ficou desesperada. Ninguém veio. Logo lembrou que havia crescido, morava sozinha e não era mais uma menina.

29-06-2015k

O Menino Retalhado

Os pais nunca ligaram muito pra ele. Diziam que não tinham tempo, que o excesso de trabalho era o grande vilão. Damien tentou de tudo: pirraças, choramingos, cara de coitado, agressões a coleguinhas na escola, mas nada adiantou. Os pais nem se davam conta. Uma tarde, brincando com os amiguinhos na hora do recreio, Damien caiu do escorregador e cortou fundo a testa. Foi uma correria na escola. Era sangue pra todo lado. O menino de tão assustado não conseguiu derramar nem uma lágrima. Ligaram para seus pais e para sua surpresa eles vieram rapidinho. Damien foi levado ao hospital e ganhou três pontos e um curativo enorme. Ele adorou! Os pais estavam realmente preocupados. Cheios de cuidados. Tão carinhosos como Damien nunca viu. Então era assim que ele podia chamar a atenção dos pais! Beleza! Desde então, Damien se transformou num caçador de aventuras arriscadas e perigosas. Mas ele só embarca mesmo em brincadeiras com alto risco a cortes e machucados. Virou um colecionador de cicatrizes. Ganhou apelido na rua e virou o herói da molecada. Tudo isso pra conseguir alguns minutos de atenção!

29-06-2015l

A Entomóloga

Chantal passa o dia inteiro no jardim, de cócoras, capturando insetos para suas experiências e pesquisas científicas. Seus insetos preferidos são os besouros de qualquer exemplar, tamanho e cor. Chantal adora escutar o cléc que faz toda vez que ela arranca uma perninha do mísero coleóptero. Uma, duas, três, quatro perninhas… O cléc, cléc, cléc, cléc soa como música aos seus ouvidos. Mas todos dizem que a menina é má, afinal, tortura os bichinhos até a morte. Alto lá! Até a morte, não! A quem possa interessar, os besouros são mantidos vivos. Mas ninguém a compreende. E muitos acreditam que seu amor pelos insetos é, digamos, bizarro. Um dia, em suas investigações campestres, a menina observou uma abelha ferida prestes a ser arrastada por um monte de formigas. Com certeza a abelhinha iria virar comida de rainha. A menina não podia deixar isso acontecer. Era uma maneira bem eficaz de provar a todos que ela realmente amava os insetos. Com todo cuidado, ela se aproximou e tentou afastar as formigas carniceiras. Mas a pobre abelha não sabia de nada disso e picou bem doído o dedinho da menina. A abelha nunca deveria ter feito isto. Chantal aos prantos apanhou um palito de fósforo e esmagou a cabeça da coitada. Agora sim, as formigas podiam mais facilmente levar o cadáver até o formigueiro.

* Para saber mais: *

. http://www.nicelopes.blogspot.com .

(O sítio www.nicelopes.com sucede ao blog)

por Ricardo S.
Imagens + Contos: Nice L.
(Publicado originalmente em 2010)

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