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O jornalismo hegemônico e a democracia de ocasião
Os dois maiores jornais diários do país defendem, em editorial, o indefensável: o suposto direito à liberdade de expressão para um agente da extrema-direita atacar a democracia e o Supremo Tribunal Federal.
por Samuel Pantoja Lima
|11/08/2025|
A linha do tempo do “tarifaço” começa no dia 2 de abril de 2025, quando Donald Trump, eleito para um segundo mandato de presidente dos Estados Unidos, anuncia com o seu conhecido estardalhaço o “Dia da Libertação”: o mapa comercial do mundo globalizado estava sendo alterado por um tarifaço que ia de 10% a 50%, valendo para 180 países. É nesta sucessão de acontecimentos envolvendo esse autocrata de clara inspiração em valores nazifascistas (incluindo o negacionismo científico, misoginia, racismo, xenofobia e coisas dessa monta), que chegamos ao “tarifaço Brasil”, que viria a ser publicizado em 09/07/25.
Recordemos os dois primeiros parágrafos da missiva do agente de extrema-direita estadunidense, que encarna uma persona autoritária por natureza, “enviada” ao presidente Lula por uma rede social:
“Conheci e tratei com o ex-Presidente Jair Bolsonaro, e o respeitei muito, assim como a maioria dos outros líderes de países. A forma como o Brasil tem tratado o ex-Presidente Bolsonaro, um líder altamente respeitado em todo o mundo durante seu mandato, inclusive pelos Estados Unidos, é uma vergonha internacional. Esse julgamento não deveria estar ocorrendo. É uma Caça às Bruxas que deve acabar IMEDIATAMENTE!” (com grifos nossos)
E, prosseguindo seu rosário de desinformação e delírios sobre o Judiciário brasileiro e as recentes eleições presidenciais no país, escreveu Trump dando um tom político incontornável à decretação do “tarifaço”:
“Em parte devido aos ataques insidiosos do Brasil contra eleições livres e à violação fundamental da liberdade de expressão dos americanos (como demonstrado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, que emitiu centenas de ordens de censura SECRETAS e ILEGAIS a plataformas de mídia social dos EUA, ameaçando-as com multas de milhões de dólares e expulsão do mercado de mídia social brasileiro), a partir de 1º de agosto de 2025, cobraremos do Brasil uma tarifa de 50% sobre todas e quaisquer exportações brasileiras enviadas para os Estados Unidos, separada de todas as tarifas setoriais existentes. Mercadorias transbordadas para tentar evitar essa tarifa de 50% estarão sujeitas a essa tarifa mais alta” (com grifos nossos).
Um fato político dessa magnitude, que alcançou dezenas de outros países em diferentes escalas entre aliados e não aliados dos EUA, passou a dominar o noticiário da mídia jornalística mainstream e do ecossistema digital independente. Observaremos, brevemente, o posicionamento de dois grandes veículos – Folha de S. Paulo e O Estado de São Paulo -, que na esteira desses acontecimentos acabaram por assumir a defesa do suposto direito à “liberdade de expressão” do ex-presidente Jair Bolsonaro contra a ordem de prisão domiciliar decretada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em 04 de julho de 2025.
Liberdade de expressão não dá guarida a crimes
Vejamos como a Folha de S. Paulo tratou do tema, em editorial intitulado “Bolsonaro tem direito à livre expressão”, o maior jornal diário impresso do país desenvolveu um curioso argumento, ao arrepio do conjunto de leis federais que punem a apologia ao crime (racismo, homofobia, misoginia, crime contra o Estado Democrático de Direito etc.). Escreveu a Folha: “O Brasil deve reconhecer que Jair Bolsonaro detém ampla liberdade de se defender na Justiça e de se expressar onde quer que seja, inclusive nas redes sociais. (…) A maioria dos colegas de Alexandre de Moraes precisa restituir esse princípio basilar da ordem democrática” (grifos nossos). O jornalão paulista foi tomado por súbito surto de amnésia política: é simples argumentar que o personagem em questão tem o mais amplo direito à defesa nos processos que respondem no Supremo Tribunal Federal; o ex-presidente já estava cumprindo medidas restritivas (o uso de tornozeleira eletrônica entre outras) e as descumpriu deliberadamente. Atentar contra a ordem democrática e o interesse econômico do país, como fez Bolsonaro e família, neste caso do “tarifaço”, seria motivo para prisão preventiva no entendimento de vários juristas de renome.
Neste caso, podemos ficar com o comentário lapidar da leitora Suzana Argollo: “Ninguém tem direito à liberdade de expressão quando essa ‘expressão’ atenta contra a liberdade e a democracia. Não é salvo-conduto para ameaçar instituições, espalhar mentiras ou insuflar violência. E quando vem de quem tem milhões de seguidores, vira arma política. Golpismo, incitação à violência e ataques às instituições não são ‘opinião’ são crimes tipificados no Código Penal” (grifos nossos).
Cabe ainda ressaltar que em seu editorial, a Folha faz extensa descrição dos crimes cometidos pelo ex-presidente, nos cinco primeiros parágrafos do texto, incluindo o mais grave de todos: a tentativa de golpe de Estado em 2022 (abolição violenta do Estado Democrático de Direito). Portanto, fica mais incompreensível ainda a defesa da “liberdade de expressão” do tal agente da extrema-direita brasileira para seguir cometendo crimes, mentindo, atacando a democracia e as instituições que a mantém, apesar dos desatinos da família Bolsonaro.
O “presentão” do Estadão a Bolsonaro
É incompreensível a defesa da Folha de SP de um suposto direito à “liberdade de expressão”, que se coloca como algo acima de quaisquer outros princípios constitucionais, incluindo o Artigo Primeiro da Constituição Federal: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, entre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana” (grifos nossos). Concomitante, e seguindo a liderança do seu congênere, o Estadão de S. Paulo bateu na mesma tecla. Em editorial intitulado “O presentão de Moraes a Bolsonaro”, o jornal dos Mesquita faz pesados ataques ao ministro Moraes por “suposta violação de ordens mal redigidas e abusivas”.
Talvez a cultura da falsa equivalência, tantas vezes usadas pelo Estadão contra as forças democráticas e progressistas do país, explique o parágrafo final que é um primor de falso dilema: “Ora, é evidente que Bolsonaro tem reiteradamente desafiado as instituições democráticas. Inclusive, é réu no STF justamente por isso, razão pela qual à Corte cabe agir com redobrada prudência. Tumultos ocasionados por seus próprios ministros, ainda mais atingindo uma figura sabidamente nociva à ordem democrática como o ex-presidente, contribuem para corroer a autoridade do Supremo. Um ato arbitrário não deixa de ser arbítrio quando praticado contra quem traz o autoritarismo na alma” (grifos nossos).
Em paralelo ao debate provocado pelo posicionamento da Folha e Estadão, na cena política do Congresso Nacional a bancada de extrema-direita, na base do desespero e da truculência, se apossava das mesas diretoras da Câmara e do Senado Federal. Em texto publicado na Newsletter da Agência Pública (“Tropa bolsonarista acua Motta enquanto jornais apertam Moraes”, 08/08/2025), a jornalista Marina Amaral (Agência Pública) escreve: “Os jornalões, liderados pela Folha de S. Paulo, passaram a espinafrar Moraes, alegando que ele teria ferido o direito de ‘livre expressão’ de Bolsonaro ao impedir o uso das redes sociais pelo ex-presidente”. E prossegue Marina: “Condenar enfaticamente Moraes no momento em que um presidente de um país estrangeiro ataca o ministro por levar adiante um processo recheado de provas – como a própria imprensa reconhece – contra um ex-presidente que tentou dar um golpe de Estado no país não pode ser apenas irresponsabilidade. É intenção” (grifos nossos).
E a jornalista, que é Diretora Executiva da Agência Pública, arremata: “O histórico dos ‘democratas’ da comunicação em defesa do golpe de 1964, apoiado pelos Estados Unidos, não recomenda a credibilidade dos defensores da ‘liberdade de expressão’ nesse momento. Menos ainda quando se unem à extrema direita, dentro e fora do Brasil, para questionar o STF e a postura altiva do governo brasileiro diante de Trump. Nós já vimos esse filme, e ele não acaba bem” (grifos nossos).
Fico com a percepção de Marina Amaral. O oligopólio midiático privado que domina a indústria jornalística no país tem zanzado entre distintas posições, uma espécie de equilíbrio na “corda bamba do antipetismo” desde o advento do “tarifaço de Trump”, lá no começo de abril. No começo, o discurso dominante das Organizações Globo foi no sentido de culpabilizar o presidente Lula pelo desatino trumpista, ao que tudo indica, “brifado” pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (o Zero Três). Depois, pressionados pelos donos dos capitais industrial, financeiro e rural (o “agro”) começaram a se reposicionar à luz do princípio da soberania nacional, sob o impacto de prejuízos incalculáveis às empresas e trabalhadores dos setores que trabalham com a exportação aos EUA, e de olho nas sondagens de opinião que indicavam a flutuação pra cima da taxa de aprovação do governo Lula. A ver, as cenas dos próximos capítulos agora que as medidas do tarifaço (50%) entraram em vigor no último dia 06 de agosto.
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