Um basta às violações e omissões


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Jovem Pan: o Brasil não pode tolerar o golpismo na mídia

por Helena Martins

Nesta semana, idas e vindas da Advocacia-Geral da União (AGU) em relação a uma ação do Ministério Público Federal (MPF) contra o grupo Jovem Pan acendem o sinal de alerta sobre o que pode ser a perpetuação de uma postura conivente com violações de direitos no âmbito da radiodifusão. O MPF aponta que o grupo pratica veiculação sistemática de conteúdos contra o regime democrático e abusos da liberdade de radiodifusão. No dia 4, a AGU informou que não havia interesse da União em migrar para o polo ativo da demanda. No mesmo dia, o advogado-geral da União, Jorge Messias, disse que a União passaria a ser também autora da ação, o que foi confirmado já no dia 6. No entanto, a AGU divergiu do entendimento do MPF, segundo o qual as concessões do grupo deveriam ser canceladas. Limitou-se a defender que a Jovem Pan seja condenada a pagar indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 13,4 milhões. O MPF cobra a União que reveja sua posição.

O primeiro inquérito civil foi instaurado no dia 9 de janeiro de 2023, logo após a tentativa de golpe que levou à depredação dos principais símbolos da República em Brasília. No texto, são detalhados casos em que comentaristas minimizaram o teor de ruptura institucional dos atos do fatídico 8 de janeiro. Mostrando não se tratar de uma postura pontual ou de possível erro, o MPF informou que “realizou levantamentos preliminares e constatou que a REDE JOVEM PAN, por meio de vários de seus programas, a princípio veiculou – sem evidências que o embasassem – numerosos conteúdos (entre reportagens, debates ao vivo e comentários no formato de coluna e opinião) desinformativos com potencial para minar a confiança dos cidadãos na idoneidade das instituições judiciárias brasileiras e na higidez dos processos democráticos por elas conduzidos” [1].

A Jovem Pan é um conglomerado midiático que mantém a Rádio Jovem Pan (News e FM) e suas afiliadas, emissora na TV paga e canais Jovem Pan no YouTube, além de site e contas nas redes sociais. A emissora anunciou ter ultrapassado 5 milhões de inscritos no YouTube, sendo a líder entre os veículos de notícia no Brasil [2]. Seus vídeos registravam mais de 13 bilhões de visualizações em 2023 [3]. Apesar da centralidade que esse espaço tem assumido, é na rádio que ela concentra sua maior força. De acordo com dados do Monitor da Propriedade da Mídia no Brasil [4], o grupo possuía, em 2017, data da última atualização, 77 afiliadas, ocupando o primeiro lugar de audiência entre os grupos radiofônicos. Apenas na Grande São Paulo, a emissora FM atingiu uma marca de 2.98 milhões de ouvintes únicos em 30 dias.

Para funcionar, a Jovem Pan recebeu uma outorga de rádio da União, sendo, portanto, concessionária de serviço público. Pela legislação, a outorga de rádio tem prazo de validade de dez anos, podendo ser renovada. Cabe ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão, e ao Congresso Nacional apreciar o ato. O Poder Judiciário pode cancelar a concessão, antes do término do prazo de sua vigência, em hipóteses graves justificadas. Exatamente por isso, em junho de 2023, em nova ação que apontou abusos sistemáticos da liberdade de radiodifusão entre janeiro de 2022 e janeiro de 2023, o MPF acionou [5] a Justiça para pedir o cancelamento de três outorgas de frequências usadas pelo grupo em Brasília e em São Paulo. Pediu ainda que fosse condenada a pagar indenização por danos morais coletivos no valor total de R$ 13,4 milhões, o equivalente a 10% dos ativos da empresa.

No Brasil, as outorgas costumam ser renovadas sem que as emissoras passem por qualquer avaliação em relação à qualidade e, mesmo, legalidade do serviço prestado. O Poder Público, em geral, pouco fez historicamente para evitar violações de direitos na mídia ou para responsabilizar emissoras que tenham cometido infrações, apesar das muitas denúncias, campanhas e ações judiciais promovidas pela sociedade civil e parceiros para enfrentar o problema. Omissão que já foi reconhecida pela Procuradoria-Geral da República, mais de dez anos atrás, em manifestação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema [6]. No governo de Jair Bolsonaro, o Ministério das Comunicações construiu um entendimento jurídico que reforçava sua omissão. Por isso, no relatório do Grupo de Trabalho Comunicações do governo de transição, em 2022, consta: “Foi constatada também a necessidade de o Ministério realizar fiscalização referente à violação de direitos humanos na programação das emissoras de rádio e TV, atribuição prevista na legislação. Ainda em relação à fiscalização, propõe-se a criação de serviço de atendimento ao cidadão, que poderá receber manifestações sobre os serviços outorgados pelo Estado”. O entendimento do MPF no caso Jovem Pan, por tudo isso, significa uma ruptura com a conivência com as violações de direitos na mídia.

O próprio MPF destaca que “a imposição judicial de medidas severas à JOVEM PAN, proporcionais à gravidade dos fatos apurados, é fundamental para, traçando uma linha no chão, firmar que condutas como as praticadas pela emissora ora demandada são juridicamente inaceitáveis, e para que, atribuídos os ônus cabíveis, outras condutas análogas a elas não se repitam mais no futuro”. Estamos falando de condutas que diuturnamente alimentam a sanha golpista, que naturalizam ou mesmo promovem a violência, desacreditam as instituições democráticas e as eleições. São elementos que estão na base da operação da direita no Brasil e no mundo, e que ganham enorme alcance a partir de uma emissora que funciona por valer-se de um bem público, e que espalha esses conteúdos pelos mais diversos espaços midiáticos, violando também o direito da população a receber informações corretas.

Diante disso, é absurdo que a AGU divirja do entendimento do MPF em relação ao cancelamento da outorga de radiodifusão. Mais absurdo ainda porque a AGU afirma que essa divergência se dá “ainda que a penalidade tenha previsão legal e a gravidade da conduta da emissora seja reconhecida” [7]. Apesar da gravidade da situação e da comprovada fundamentação dos pedidos, conclui que os abusos cometidos pela empresa devem ser reparados por outras medidas, fundamentalmente o pagamento de R$ 13 milhões. Também pede que a emissora seja obrigada a veicular conteúdos informativos sobre a correição do processo eleitoral.

Uma multa de R$ 13 milhões é praticamente um convite à perpetuação de infrações em troca de ganhos políticos e econômicos. Segundo a Folha de S. Paulo [8], a Jovem Pan chegou a receber R$ 20 milhões por mês apenas do YouTube, valor referente à monetização de seu canal, por meio do qual promoveu desinformação e outras condutas criminosas. Esse tipo de medida também não resolve o problema que é seguirmos tendo no ar um grupo que aderiu ao golpismo, o que não deve ser tolerado [9]. Permitir a continuidade da Jovem Pan é, além de criminoso, politicamente equivocado, pois não há dúvidas de que seguirá sendo uma ameaça à democracia. O Brasil já sofre por manter uma mídia avessa ao interesse público e que, claramente, desde a ditadura militar, flerta com o golpismo sempre que lhe convém. Também em relação a este setor, é hora de dar um basta às violações, virar a página da omissão e dizer: sem anistia!

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[9] Como revelou a reportagem de Ana Clara Costa para a revista Piauí, em 2022, a Jovem Pan aderiu ao bolsonarismo e passou a usar seus veículos para dar visibilidade aos discursos de extrema direita. A matéria revela que a projeção foi alcançada com o apoio do Google, que direcionou 300 mil dólares para o grupo em 2018. Ele conseguiu, a partir de negociação com a plataforma digital, vender publicidade diretamente em seu canal e obter benefícios na moderação efetivada por ela. Em vez do uso de inteligência artificial para possível remoção de conteúdos, a Jovem Pan tem o privilégio de contar com uma equipe responsável pela parceria, tudo para facilitar seu sucesso na internet e fora dela, pois as mídias são integradas por diversas estratégias, como envio de links de programas como “Os Pingos nos Is” pelo WhatsApp.

{ Direito à Comunicação e Democracia – DiraCom }

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