De como as mulheres devem ser


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Feminismo Sinhá não vai salvar afegãs: entrevista com antropóloga Francirosy Barbosa

No Brasil, chegaram a montar um grupo de WhatsApp para “salvar” as afegãs. É para rir. Não é possível que existam mulheres que tenham essa prepotência

por Vitória Régia da Silva
[Gênero e Número/2021]

Com a tomada do poder em Cabul pelo Talibã na última semana, muito tem se falado sobre o futuro das mulheres afegãs. Veículos de imprensa internacionais e agências de notícias noticiam que as mulheres na capital do Afeganistão não saem mais de casa e muitas estão aterrorizadas com a perspectiva de viver sob o domínio do grupo e com a possibilidade de perder os direitos sociais e econômicos que conquistaram nas últimas duas décadas.

Até o momento, o Talibã tem tentado passar uma imagem de “moderado”, mas os afegãos não estão convencidos de que o grupo fará um governo diferente daquele que instaurou entre 1996 e 2001, quando adotou uma visão extremamente rigorosa da lei islâmica (sharia) e impôs restrições de locomoção, estudo e trabalho para as mulheres. Na primeira entrevista coletiva do Talibã desde que voltou ao poder, o porta-voz do grupo, Zabihullah Mujahid, afirmou que vão respeitar os direitos das mulheres, desde que dentro das normas da lei islâmica, sem especificar como será feito.

Em entrevista à Gênero e Número, Francirosy Campos Barbosa, antropóloga, pesquisadora no Departamento de Psicologia Social na Universidade de São Paulo e pós-doutoranda pela Universidade de Oxford, fala sobre a incerteza do impacto da ascensão do grupo em relação aos direitos das mulheres afegãs, explica o uso da burca por muçulmanas e critica a postura de “salvadoras” do feminismo ocidental diante das mulheres afegãs e muçulmanas.

“Precisamos parar com essa ideia de que precisamos ‘salvar’ outras mulheres. As afegãs têm suas próprias agendas, seus movimentos, e o que é necessário é apoiar o movimento das mulheres afegãs (…) O que as ocidentais fazem é um ‘Feminismo Sinhá’. Se não estiverem vestidas como elas, não são vistas como mulheres livres. É um feminismo que dita regras de como as mulheres devem ser”, critica.

Leia a entrevista completa:

Gênero e Número: Qual o impacto da ascensão do grupo ao poder para os direitos das mulheres conquistados nos últimos 20 anos?

Francirosy Campos Barbosa: Não foi uma surpresa a tomada de poder do Talibã. Foi uma retomada pensada e amarrada. Esse Talibã de agora não é o mesmo de 2001, mas ao mesmo tempo, é muito cedo para dizer o que ele é. Devemos esperar um pouco mais para entender quem é esse e como ele vai se manter no poder. As mulheres, por já terem sofrido com o Talibã antes, é claro que vão se esconder nesse momento até terem certeza do que vai acontecer. Elas estão se precavendo. O que vai acontecer só o tempo dirá.

GeN: Os talibãs têm dito repetidamente que os direitos das mulheres serão protegidos sob seu governo. É possível acreditar nesse tom moderado do grupo terrorista sobre as mulheres?

FCB: É possível. Como estamos em um outro contexto, 20 anos depois da primeira tomada do poder, muita coisa mudou nesse período. Não estou dizendo que o Talibã mudou a ponto de criar a sociedade que eu quero viver, mas eu sei que não é o mesmo grupo de antes. Se eles preservarem os direitos e conquistas das mulheres, já é um avanço.

Precisamos entender se vai ser um estado teocrático, por exemplo, em que as mulheres devem usar lenço e não burcas. A obrigatoriedade de as mulheres usarem burcas ou não estudarem não é do estado teocrático, é radicalismo.

Não é nem fundamentalismo religioso, porque seguir os fundamentos da religião não tem problema, a questão é o extremismo. O Islã não proíbe as mulheres de estudarem, pelo contrário, estimula as mulheres a buscarem conhecimento. Eu não imagino que o Talibã vai sair fechando as escolas para as mulheres, mas também não posso afirmar que isso não vai acontecer. Ainda está tudo incerto.

GeN: Um dos pontos de discussão sobre as restrições dos direitos das mulheres com a tomada do poder pelo Talibã é a possível obrigatoriedade do uso da burca (traje que cobre completamente o corpo da mulher, com uma treliça estreita à altura dos olhos). Qual a sua avaliação sobre isso?

FCB: O uso da burca não é um fundamento da religião. É uma vestimenta daquele contexto. Por incrível que pareça, foi uma invenção das mulheres pachto, etnia da qual emerge o Talibã. Elas inventaram porque, na região que estavam, as mulheres eram minoria e não queriam ser notadas ao sair nas ruas. É uma questão cultural.

Quando o Talibã toma posse, ele começa a obrigar as mulheres a usar essa vestimenta. Mas isso não quer dizer que todas devem se vestir assim. O Alcorão (livro sagrado dos muçulmanos) fala sobre se vestir e se comportar modestamente em público, e no caso das mulheres, sobre cobrir a cabeça para sair de casa, mas é cobrir com um lenço, e não o uso da burca e nem cobrir o rosto, mãos e pés. As mulheres têm livre arbítrio, assim como em outras religiões monoteístas, para usarem ou não o lenço. Existem mulheres que não usam lenço, e isso não quer dizer que elas não praticam a religião.

GeN: A salvação das mulheres afegãs vem do Ocidente?

FCB: De jeito nenhum. Temos que parar com essa ideia de que precisamos “salvar” outras mulheres. As afegãs têm suas próprias agendas, seus movimentos, e o que é necessário é apoiar o movimento dessas mulheres. No Brasil, chegaram a montar um grupo de WhatsApp para “salvar” as afegãs. É para rir. Não é possível que existam mulheres que tenham a prepotência de achar que vão salvar as mulheres afegãs.

O que as ocidentais fazem é um “Feminismo Sinhá”; se não estiverem vestidas como elas, não são vistas como mulheres livres. Na França, as mulheres muçulmanas são proibidas de usar burquinis (um maiô usado por muçulmanas que cobre da cabeça aos pés) nas praias. Por isso, as feministas não lutam. É um feminismo que dita regras de como as mulheres devem ser. Falta uma aproximação real do feminismo ocidental com as mulheres muçulmanas.

E para as que quiserem ajudar, primeiro é necessário ouvir o que as afegãs querem. E muitas vezes as suas demandas vão ser diferentes das de mulheres ocidentais. É preciso respeitar isso. Se elas não quiserem tirar a burca, é um direito delas. Não podemos tirar a força e o protagonismo delas. O protagonismo não é nosso.

GeN: A situação do Afeganistão pode levar a um aumento da islamofobia em outros países, como o Brasil?

FCB: A minha grande pesquisa nesse momento é a islamofobia. O maior gatilho de islamofobia que tivemos na história foi o 11 de setembro, mas toda vez que tem algum atentado essa reação contra muçulmanos volta com força. Com a volta do Talibã ao poder agora, começam a sair reportagens e informações deturpadas sobre o Islamismo. E quem não conhece a religião e a cultura vai absorver essas informações, reforçando estereótipos, preconceito e violência. O trabalho que fazemos na academia é exatamente para tentar romper com isso. Ainda assim é difícil. E a islamofobia sempre reverbera no Brasil. Não temos como fugir. Já estamos percebendo isso.

GeN: Como a islamofobia impacta a vida das mulheres muçulmanas?

FCB: Para os ocidentais, as mulheres muçulmanas são coitadas, oprimidas, inferiores. Até a sua sexualidade é colocada em xeque, como se fossem proibidas de ter prazer. As pessoas começam a criar imaginários da religião com base na falta de conhecimento.

O nome “Feminismo Islâmico” é um nome dado pelos ocidentais, e não pelas muçulmanas, a partir da luta das mulheres pelos seus direitos. Isso gera uma confusão na comunidade, porque alguns muçulmanos acham que Feminismo Islâmico é algo da religião e não um movimento social. As feministas islâmicas não necessariamente querem as mesmas coisas que as feministas seculares. Dentro do próprio Feminismo Islâmico existem vários tipos de feminismo.

GeN: Como falar de violência e opressão de grupos, principalmente mulheres e população LGBT+, por fundamentalistas islâmicos sem culpabilizar toda a cultura islâmica?

FCB: A única maneira é que as pessoas estudem e busquem informações, ouçam pesquisadores e as pessoas muçulmanas. A falta de conhecimento só traz ruído e leva a maior islamofobia. Já é possível perceber o aumento da islamofobia nesse momento. As pessoas não fazem distinção entre Talibã, terrorismo e islamismo. No Brasil, veem uma mulher de lenço e acham que faz parte do mesmo grupo e pensamento. É por isso que temos que ter cuidado com as informações que passamos adiante, porque gera islamofobia e violência contra as nossas mulheres. É assustador.

{ Diálogos do Sul }

A morte de mulheres palestinas e o silêncio das feministas e da academia

por Francirosy Campos Barbosa
[publicado originalmente em ‘Jornal da USP’]

Há muito tempo venho enfrentando o feminismo branco e liberal, quando se trata de falar sobre mulheres marrons, muçulmanas, palestinas, entre outras. Mulheres essas que, esquecemos, não vivem como nós, não pensam como nós, não acreditam nas mesmas coisas que “nós”. A ideia de “salvar” essas mulheres passa pela cabeça de muitas, seja pelo véu que cobre seus corpos, seja pela crença que não conhecem, seja porque simplesmente elas não têm a mesma cor, o mesmo cabelo, o mesmo padrão econômico, social e cultural.

Não vou me estender no “Feminismo Sinhá”. Já escrevi sobre isso, e citei minha amiga judia marroquina, Carla Mustafa, a quem credito o termo. A luta pela libertação dos nossos corpos passa pela libertação do colonialismo, do imperialismo, que afeta a vida de mulheres não brancas, não ocidentais, de forma mais violenta que qualquer outra. Não é sempre que a “tradição religiosa” impera de forma patriarcal, muitas vezes é na religião, neste acolhimento difícil de explicar em palavras, que muitas mulheres encontram o seu conforto, em horas em que a ajuda não chega, seja do Estado, seja de outros governos, seja de movimentos feministas, que ousam não ouvir suficientemente o chamado – que a vida delas têm sentido e que isso perpassa o seu pertencimento religioso. É uma violação diária de corpos, é não escuta, não presença no acolhimento da dor de mulheres que são diametralmente diferentes dos nossos interesses políticos, ideológicos, religiosos e não religiosos. No entanto, elas seguem sendo mulheres, com suas dores, seus corpos, seus filhos, suas famílias e suas vidas despedaçadas pela guerra, pelo terror.

Neste momento, segundo dados divulgados pela ONU em 2 de março de 2024, são nove mil mulheres assassinadas pelo Estado de Israel. A ONU Mulheres alerta que, sem o fim da violência, cerca de 63 mulheres podem ser mortas diariamente. Os dados da entidade apontam que 37 mães são mortas a cada dia, deixando as famílias desamparadas e filhos em vulnerabilidade. Os dados a seguir são do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários e do Ministério da Saúde da Palestina, de 27 de fevereiro de 2024:

* 30.206 mortos (407 na Cisjordânia e 29.692 em Gaza)

* 8 mil desaparecidos (sob os escombros, logo, pessoas mortas)

* Total de mortos (considerando desaparecidos): 38.206. Isso equivale a 1,75% da população palestina de Gaza, de 2.223.000 em 7 de outubro de 2023, quando teve início o genocídio na Palestina

* 12.765 crianças mortas (105 na Cisjordânia)

* 4 mil crianças desaparecidas (sob escombros, então, mortas)

* Total de crianças mortas: 16.765 (45% do total de mortos)

* 8.570 mulheres mortas

* Perto de 700 mulheres desaparecidas (sob escombros)

* Total de mulheres mortas: 9.270, pelo menos (25% dos mortos)

Os deslocados são 1,93 milhão (86,55% da população, oficialmente em 2.223.000), muito maior do que foi a Nakba em 1948, que expulsou ou matou mais de 750 mil palestinos.

É importante trazer esses dados, porque mesmo que eles se alterem diariamente, sabemos que falamos de genocídio, de limpeza étnica (como nos diz Ilan Pappé em sua obra A limpeza étnica da Palestina) que afeta os/as palestinos/as. Não dá mais para dizer que é crise humanitária, pois neste caso seria possível enviar alimentos, construir casas etc. Não é o que estamos assistindo. Nesta semana, todos acompanharam palestinos sendo assassinados, massacrados quando tentavam retirar a única forma para sobreviver em meio aos escombros: comida. Infelizmente vemos intelectuais, políticos, agentes públicos indignados com a fala do presidente Lula, mas pouco indignados e ativos quando se trata de defender a vida das mulheres palestinas e crianças palestinas. Não posso me referir a todos os grupos, mas um em particular, me espanta: apenas uma faculdade da USP, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, se pronunciou sobre este horror em sua Congregação.

Acho que vale a pena nos perguntarmos: qual é a ação da Universidade de São Paulo frente à dor de tantas pessoas? Onde estão as feministas da USP, sempre prontas a defender mulheres em situação de risco? Enfim, o que fazemos diante disso tudo?

O silêncio percorre nossos corredores, nossos pátios e cantinas.

Nem precisaria explicar, mas vou. Não estamos falando do judaísmo, da fé de judeus, não se trata disso, nem dos nossos amigos judeus, o patrão judeu, a professora judia. Estamos falando da vida de mulheres, homens, crianças que morreram e morrem há 76 anos para terem sua casa, sua rua, seu bairro, seu país… Desde a Nakba (catástrofe), o povo palestino vem sendo dizimado paulatinamente. Trata-se do fim do apartheid palestino. A Universidade tem responsabilidade diante disso, não pensem que não tem.

Quando nos deparamos com o fato que mulheres palestinas, desde o início, tiveram que se submeter a medicamentos para não menstruarem, pois a dificuldade em se manter minimamente, ou melhor, dignamente limpas já tornava isso humanamente impossível, o sinal de alerta nas mulheres que defendem pautas feministas deveria ter sido ligado. O corpo feminino abusado, violado de diversas formas, quando foram submetidas a um bombardeio incessante, não podendo alimentar seus filhos, cuidar deles, tudo isso deveria ser suficiente para nos movermos sem restrição, sem medo. É pela vida de mulheres palestinas! De mulheres judias! Ainda escuto o grito de uma mãe palestina que dizia: “Meus filhos morreram e eu não tinha alimentado nenhum deles, meus filhos morreram com fome!”. Não dá para dizer que precisa ser mãe para entender esse grito, esse choro… basta estar vivo para compreender isso… é uma questão de humanidade.

Há cinco meses, as senhoras feministas brancas, ocidentais, liberais, assistem à morte de mulheres e crianças, mas é a fala do presidente que incomoda. Mas não li esses mesmos/as incomodados/as citando May Golan, Ministra da Igualdade Social e Empoderamento Feminino de Israel, quando disse: “Estou pessoalmente orgulhosa das ruínas de Gaza, e que todos os bebês (palestinos), mesmo daqui a 80 anos, contarão aos seus netos o que os judeus fizeram”. O Estado de ultradireita de Netanyahu é totalmente antissemita, trabalha incessantemente para macular a imagem dos judeus. “Não em meu nome”, respondem meus amigos de origem judaica.

Com aclamação dos participantes, o 42º Congresso do Andes-SN realizado em Fortaleza, entre 26 de fevereiro e 1º de março de 2024, aprovou uma moção em defesa dos Palestinos. Caberia a nós nos juntarmos e fazer o mesmo em cada espaço acadêmico e fortalecer a luta pelo fim desse apartheid, desse genocídio que já matou mais de 30 mil palestinos.

Por fim, chegamos a mais um 8 de março, Dia Internacional da Mulher, uma data de luta, mas se não incluímos a dor das mulheres palestinas em nosso discurso, em nossa frente de militância, acadêmica, é porque não entendemos ainda a urgência que é a luta pela vida dessas mulheres. É preciso dar escuta a todas as mulheres que estão na luta pela sobrevivência, seja na Palestina, nas periferias das cidades, nas universidades. Que sejamos um corpo só em nossa diversidade – em nossa humanidade.

Deixo aqui, para quem quiser se somar à Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino, o documento para assinatura.

{ Monitor do Oriente }

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