Com essa mesma energia

Alceu Valença: biografia mostra a intensa relação do músico com a cultura popular

Publicação descreve como o artista atravessou gerações sem se desfazer das tradições

por Afonso Bezerra

Na década de 1960, um ritmo novo fazia a cabeça e o figurino da juventude recifense. Era o rock, gênero importado dos Estados Unidos que contagiava a nova geração a partir dos acordes de Elvis Presley. O ritmo se espalhou pela cidade como uma febre, mudando forma de se vestir, dançar e até o nome das pessoas.

Um jovem, recém-chegado ao Recife, não se deixou influenciar pela nova tendência. Preferia ouvir os sons mais tradicionais da sua região, como coco, ciranda e o baião – gênero que, na época, desfrutava de um estrondoso sucesso na voz de Luiz Gonzaga.

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Esse jovem é Alceu Valença, um dos artistas mais importantes da Música Popular Brasileira e que se consagraria ao longo das próximas décadas como profundo defensor das raízes do nordeste, além de autor de hits que se eternizaram no cancioneiro nacional.

Este percurso, das origens no agreste pernambucano, atravessando a era das gravadoras, até os vídeos viralizados na internet, está narrado no livro Pelas ruas que andei – uma biografia de Alceu Valença. O material é assinado pelo jornalista carioca Julio Moura e será lançado no próximo dia 27 de Junho, no Paço do Frevo, no Recife.

O livro foi editado pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE), em parceria com a Relicário Produções, e já está em pré-venda no site da editora. O projeto ainda tem versão digital e um audiolivro. Além de Recife, Pelas ruas que andei será lançado no Rio de Janeiro (25 de Julho) e em São Paulo (27 de Julho).

Uma biografia não definitiva

Julio atua como assessor de imprensa do próprio biografado desde 2009 e reputa que esta não é uma biografia definitiva sobre o artista pernambucano, nem um livro de memórias. O cargo lhe favoreceu, em certa medida, o contato direto com o personagem, conseguindo assim colher importantes depoimentos e testemunhar cenas recentes dessa carreira de sucessos.

Além de registrar o brilho da carreira do artista, Julio percebeu que tentaria preencher uma lacuna: a história de vida dos músicos que sugiram na década de 1970, em especial vindos do nordeste, é pouco documentada.

O ofício lhe deu outra vantagem: acessar reportagens e entrevistas de Alceu aos cadernos de cultura dos mais diversos jornais do país ao longo dos últimos cinquenta anos. A cobertura da imprensa foi o ponto de partida da narrativa.

“Claro que tem muito da minha convivência ali com ele. Mas um traço que me chama atenção é o diálogo do artista com a imprensa e com o jornalismo cultural. Alceu deu sempre grandes entrevistas, sempre com muita contundência e muito questionador. E eu procurei fazer com que os jornalistas e os cadernos de cultura fossem personagens de alguma maneira”, conta o autor.

É esse universo que está na biografia. Alceu tem uma obra composta por mais de 30 discos, em quase cinquenta anos de carreira. Julio decidiu costurar a narrativa do livro com duas linhas de raciocínio: a memória da família Valença e a discografia do artista, como se cada lançamento refletisse o clima e a temperatura do personagem naquela época, costurada por depoimentos de parceiros, críticos e pesquisadores.

Ele busca recuperar elementos sensíveis para a formação do artista, como o contato com personagens da cultura popular, o sucesso do neorrealismo italiano no cinema, os programas de rádio, a presença do universo circense na performance nos palcos e as referências profissionais, como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro.

“Alceu é um compositor, escritor e poeta bastante autorreferente e muito autobiográfico. As canções dele, quase todas, se referem a algum fato específico, a alguma coisa que aconteceu na trajetória dele. Os artistas, de maneira geral, acabam sendo autorreferentes”, conta o autor.

Na embolada do tempo

O livro começa, obviamente, pelas origens do artista e faz com que o leitor viaje até São Bento do Una, no agreste pernambucano, para conhecer de perto a formação familiar dos Valença. É lá, por exemplo, que Alceu conhece os repentistas, os sanfoneiros, cordelistas e toda vibração cultural das feiras de rua, que defenderá com muita veemência diante dos movimentos do mercado.

“Aquela cultura, que Alceu tanto defende ao longo da carreira, ele conhece na fonte”, relembra o autor da biografia.

Em seguida, o desembarque no Recife e a descoberta do novo mundo: o frevo, as quadrilhas juninas, o cinema, o curso universitário e a boemia da metrópole em ascensão, até chegar a hora da partida para o mundo dos palcos, das gravadoras e das viagens.

Alceu Valença inicia a carreira solo no mundo do mercado fonográfico nos anos 1970, com o disco Molhado de Suor após fracassos e vaias nos Festivais de Música super disputados na reta final dos anos 1960.

A década de estreia foi marcada pela intensidade, o senso crítico e a energia underground, em que ele fez uma ponte entre o regional com o moderno, criando uma casca para as garras das gravadoras e conservando a originalidade do próprio trabalho.

“Um álbum emblemático da década de 1970 é o disco Vivo!, que muitas vezes é chamado de disco de rock. Alceu ressalva que não. Ele diz que, na verdade, são ritmos que descendem das bandas de pífano, dos aboios, das novenas, só que com uma instrumentação que dialoga com o espírito daquele tempo”.

O autor de Anunciação e Tropicana, canções hoje consolidadas no nosso imaginário, caiu no gosto popular nos anos 1980, a partir do lançamento do disco Coração Bobo. O trabalho, que reúne canções super conectadas com a origem de Alceu, explodiu no país com mais de 700 mil cópias vendidas, superando ícones consolidados daquela época, como Maria Bethânia e Chico Buarque.

A fama lhe rende agendas lotadas de shows e trilhas de novelas na Rede Globo. Mas não o protege de conflitos com os empresários e gravadoras, uma relação sempre tensa ao longo da carreira.

Ele sempre recusou a ideia dos ídolos. Dizia que escolher referências poderia contaminar a sua própria criação e ferir a originalidade do seu trabalho. Mas não deixou de reconhecer figuras determinantes para as suas composições e para a difusão da cultura nordestina, como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, ambos que, de referência, passaram a ser admiradores e parceiros de trabalho.

No livro, Julio relata que Gonzagão prestigiou um show de Alceu no Crato, no Ceará, e classificou o estilo daquele espetáculo como uma espécie de “banda de pífano elétrica.”

A biografia não deixa de fora a formação de parcerias fundamentais para carreira de Alceu e para a música nacional, como os trabalhos com Geraldo Azevedo, Lula Côrtes, Paulo Rafael, Zé Ramalho e Elba Ramalho.

Um astro para além da música

Versátil, Alceu tinha sensibilidade para a poesia e admiração profunda pelo cinema, a ponto de encenar o filme A noite do espantalho (1974) e dirigir o A luneta do tempo (2014).

Como todo poeta, escolheu uma musa para suas canções. Na verdade, várias. A principal delas é a cidade de Olinda, descrita por diversas sensações em composições históricas. Essa devoção à cidade lhe rendeu o título de embaixador do município.

Esta energia intensa para compor também se fazia presente nos debates públicos. Alceu colocou a arte a serviço da política e participou do momentos históricos do país, como o show do dia do trabalhador no Riocentro, as manifestações pelas Diretas Já! e foi um incentivador da criação do Partido dos Músicos, legenda que representaria a classe artística no Congresso Nacional. Um plano que naufragou logo no embarque.

“Alceu sempre teve uma ligação forte com a política e teve uma participação ativa nas Diretas, viajou o Brasil ao lado do Ulysses Guimarães. Ali há uma grande movimentação da classe artística em relação aos novos rumos do país e o Alceu enseja essa coisa um pouco utópica. A ideia dele era eleger artistas para que participassem da Constituição”.

O livro, por fim, ao viajar pelos bastidores da discografia valenciana, deixa a sensação de que Alceu é um artista que atravessa gerações e permanece conectado com os novos públicos, fazendo sucesso na era da internet e figurando em festivais com grande parte da plateia formada por quem não era nem nascido quando ele lançou os primeiros discos.

“É notória a maneira como o Alceu, nos últimos tempos, vivencia um novo auge. É impressionante a quantidade de crianças, jovens, adolescentes, fora pessoas de gerações anteriores, como eu que, enfim, vão ao show do Alceu, vibram intensamente em todo o Brasil e exterior. Ele atribui muito à internet”, observa Julio.

Com essa mesma energia, ele também se sustenta como um ilustre defensor da cultura pernambucana, se colocando como grande intérprete de frevo e um agitador da folia durante o Carnaval, incentivando os compositores locais e animando os foliões. A voz dele serve como um alerta para que o gênero genuinamente de Pernambuco não caia no esquecimento e, por isso, reforça a tese do biógrafo:

“Alceu tem uma marca muito forte, que é jamais abrir mão da sua identidade”.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

. Fotografia:
“Divulgação – Relicário Produções/CEPE”
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. Vídeo:
“‘Alceu Valença jamais abriu mão da sua identidade’, afirma biógrafo – Reprodução/YouTube”

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{ Brasil de Fato }

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