mais liberdade, menos coerção

26-10-2016b

A questão da ideologia em Gramsci

por Leandro Konder

O italiano Antonio Gramsci desenvolveu uma interpretação bastante original da filosofia de Marx. Para ele, a perspectiva do pensador alemão era a de um “historicismo absoluto”. No essencial, o pensamento de Marx nos desafia – sempre! – a pensar historicamente. E esse desafio nos põe diante tanto de possibilidades magníficas como de dificuldades colossais. Pesa sobre nós uma tradição negativa, que se fortaleceu muito ao longo dos séculos XVII e XVIII, segundo a qual o “senso comum” é depositário de tesouros de sabedoria. Gramsci admitia que o “senso comum” possuía um caroço de “bom senso”, a partir do qual poderia desenvolver o espírito crítico. Advertia, contudo, para o risco de uma superestimação do “senso comum”, cujos horizontes, afinal, são inevitavelmente muito limitados. O “senso comum é, em si mesmo, “difuso e incoerente”. A percepção da realidade, no âmbito desse campo visual estreito, não poderia deixar de ser – segundo o teórico italiano – drasticamente “empírica”, restrita à compreensão imediata, superficial.

Em sua origem, o termo “ideologia” compactuava, implicitamente, com uma valorização exagerada da força da percepção sensorial. Gramsci se referiu ao fato de que o primeiro conceito de ideologia foi elaborado por filósofos franceses vinculados a um “materialismo vulgar”, teóricos que pretendiam decompor as idéias até chegarem aos “elementos originais” delas, quer dizer, até chegarem às “sensações”, das quais, supostamente, as idéias derivavam. Tratava-se, assim, de uma concepção “fisiológica” da ideologia (GRAMSCI, 1977, p. 453).

Marx e Engels, os “fundadores da filosofia da práxis”, submeteram essa concepção a uma crítica vigorosa. Tornaram-se, filosoficamente, os representantes de um pensamento que implicava “uma clara superação” (“un netto superamento”) da ideologia (GRAMSCI, 1977, p. 1.491). No entanto, adotaram o termo, conferindo-lhe, naturalmente, um sentido pejorativo.

Para Marx e Engels, a ideologia fazia parte da “supra-estrutura”, e como tal deveria ser criticamente analisada. As construções supra-estruturais combinam elementos de conhecimento e expressões de pressões prejudiciais à universalidade do conhecimento. A ideologia, na acepção em que Marx e Engels usam a palavra, torna-se, na supra-estrutura, um fator de equívocos, “un elemento di errore”, segundo Gramsci (GRAMSCI, 1977, p. 868). E o principal equívoco, aquele que costuma se verificar com maior frequência, é aquele que consiste numa visão “ideológica” da ideologia e que resulta numa desqualificação dos fenômenos ideológicos.

O pensador italiano explicava:

“O processo desse erro pode ser facilmente reconstituído. 1) A ideologia é identificada como distinta da estrutura e se afirma que não são as ideologias que mudam a estrutura, mas, ao contrário, é a estrutura que muda as ideologias: 2) afirma-se que determinada solução política é ´ideológica, isto é, insuficiente para mudar a estrutura, quando acredita que poderia mudá-la; afirma-se, então, que ela é inútil, estúpida, etc ; 3) passa-se, por fim, a afirmar que toda ideologia é pura aparência, é inútil, estúpida, etc.” (GRAMSCI, 1977, p. 868).

Essa desqualificação ilimitada, generalizada, impede a perspectiva comprometida com a superação das distorções ideológicas (a perspectiva de Marx e Engels) de reconhecer concretamente as diferenças significativas que existem no interior do campo da ideologia. E dificulta enormemente ao crítico das limitações da ideologia reconhecer a complexidade dos elementos ideológicos presentes no seu próprio pensamento.

Gramsci propunha uma atenção especial para as diferenças internas da ideologia. Fixava-se, em especial, numa diferença que lhe parecia decisiva: “é preciso distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, que são necessárias a uma certa estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalizadas, desejadas” (idem, ibidem).

As ideologias “arbitrárias” merecem ser submetidas a uma crítica que, de fato, as desqualifica. As ideologias “historicamente orgânicas”, porém, constituem o campo no qual se realizam os avanços da ciência, as conquistas da “objetividade”, quer dizer, as vitórias da representação “daquela realidade que é reconhecida por todos os homens, que é independente de qualquer ponto de vista meramente particular ou de grupo” (GRAMSCI, 1977, p. 1.456).

A ciência é um conhecimento que se expande, que se aprofunda e se revê, se corrige, continuamente. Ela também é histórica, não pode pretender situar-se acima da história, não pode pretender escapar às marcas que o fluxo da história, a cada momento, imprime nas suas construções. Por isso, não é razoável tentar promover uma contraposição rígida entre ciência e ideologia. “Na realidade”, escreveu Gramsci, “a ciência também é uma supra-estrutura, uma ideologia” (GRAMSCI, l977, p.1.457).

Há alguma diferença entre ciência e ideologia, entre filosofia e ideologia? Gramsci não consegue ser muito preciso na resposta a essa indagação. Ele diz que a ideologia se torna ciência quando assume a forma de “hipótese científica de caráter educativo energético” e é “verificada (criticada) pelo desenvolvimento real da história” (GRAMSCI, 1977, p. 507). E a filosofia? Uma distinção é sugerida quando o filósofo afirma: “O progresso é uma ideologia, o vir-a-ser é uma filosofia” (GRAMSCI, 1977, p. 1.335). Contudo, a maior preocupação do autor dos ‘Cadernos do Cárcere’ é a de evitar que alguma construção cultural ou algum elemento da supra-estrutura sejam destacados da ideologia e concebidos como independentes dela.

A própria “filosofia da práxis” (o marxismo) não pode se pretender imune às vicissitudes da ideologia. Na medida em que está comprometido com um projeto e uma ação de crescente mobilização das classes populares – cuja consciência se move no plano do “senso comum” – compreende-se que o marxismo tenha acabado por se mostrar um tanto impregnado pelos critérios (frequentemente preconceituosos ou supersticiosos) determinados pela percepção das massas. O pensador italiano constatava: “a filosofia da práxis se tornou, ela também, ‘preconceito’ e superstição’” (GRAMSCI, 1977, p. 1.861).

Gramsci, convém ressalvar, não se assustava com essa constatação. Ele estava convencido de que nenhuma força inovadora consegue atuar com eficácia imediata e preservar sua coesão com completa coerência. De fato, a força inovadora “é sempre racionalidade e irracionalidade, arbítrio e necessidade. É ‘vida’, quer dizer, tem todas as fraquezas e forças da vida, tem todas as suas contradições e suas antíteses” (GRAMSCI, 1977, p. 1.326).

O que importa não é a ambição irrealista de se preservar contra toda e qualquer “contaminação” por parte das contradições sociais, e sim a firme disposição para uma luta permanente no sentido de superar os elementos “acríticos” da consciência, em ligação com o projeto de revolucionamento da sociedade.

Por seu “caráter tendencial de filosofia de massa”, a filosofia da práxis só pode se desenvolver de modo polêmico, em confronto com os nostálgicos do passado ou com os aproveitadores da situação presente. É no conflito que ela se liberta, ou tenta se libertar, “de todo elemento ideológico unilateral e fanático” (GRAMSCI, 1977, p. 1.487).

De acordo com a concepção de Gramsci, por conseguinte, a ideologia tem elementos unilaterais e fanáticos, e tem igualmente elementos de conhecimento rigoroso e até mesmo de ciência. Nesse sentido, a ideologia pode chegar a se identificar com “todo o conjunto das supra-estruturas” (GRAMSCI, 1977, p. 1.320).

Por um lado, pois, a perspectiva do pensador italiano atribui uma importância imensa à ideologia (especialmente às ideologias “historicamente orgânicas”); por outro lado, porém, o materialismo histórico não permite que se acredite ingenuamente no poder das ideologias como tais revolucionarem a sociedade. Gramsci escreveu: “Para Marx as ´ideologias` não são meras ilusões e aparências; são uma realidade objetiva e atuante. Só não são a mola da história” (GRAMSCI, 1977, p. 436).

Segundo o teórico italiano, caberia aos revolucionários agir, atuar praticamente. No entanto, para uma atuação eficaz, eles precisariam superar as “ideologias parciais e falaciosas”, através de um processo no qual deveriam se apoiar nas ciências e na filosofia, buscando o máximo de “objetividade” no conhecimento, e encaminhando então, na ação, a realização prática efetiva da “unificação cultural do gênero humano” (GRAMSCI, 1977, p. 1.048).

A busca da ampliação do quadro de referências e o esforço no sentido de alcançar maior universalidade no conhecimento conferem ao confronto supra-estrutural das idéias uma característica muito diversa daquela que se encontra nas batalhas “militares”. Na “guerra”, o combatente procura atacar os pontos fracos do adversário. Na controvérsia ideológica, entretanto, quando se trata de alcançar uma compreensão mais ampla e mais profunda, cumpre enfrentar o desafio de enfrentar as objeções mais fortes dos interlocutores mais notáveis (“i piu eminenti”) na representação do ponto de vista oposto (GRAMSCI, 1977, p. 875).

Em outro fragmento dos Cadernos do Cárcere se pode ler uma advertência metodológica aparentada com a preocupação que se manifestou no trecho acima referido: “Na abordagem dos problemas histórico-críticos, não se deve conceber a discussão científica como um processo judicial, no qual existe um acusado e um promotor que, por obrigação funcional, deve demonstrar que o acusado é culpado e merece ser retirado de circulação” (GRAMSCI, 1977, p. 1.267).

A concepção de ideologia adotada por Gramsci está ligada a uma certa unificação das supra-estruturas em torno dos valores históricos do conhecimento e da cultura. O pensador italiano é, sem dúvida, um materialista; seu materialismo, porém, tem uma feição peculiar: está permanentemente atento para a importância da criatividade do sujeito humano, para o poder inovador dos homens, tal como se expressa nas criações culturais.

Apesar das grandes diferenças, Gramsci tem em comum com Lukács (que ele nunca chegou a ler) um profundo apreço pela cultura como tal. Na análise do autor dos Cadernos do Cárcere, a ideologia conservadora dominante estaria se tornando cada vez mais cética em relação aos valores básicos da cultura, do conhecimento, da teoria em geral, por causa da crise da cultura burguesa, que vem perdendo sua capacidade de exercer uma verdadeira hegemonia sobre a sociedade. “A morte das velhas ideologias” – anotou Gramsci – “se verifica como ceticismo em relação a todas as teorias” (GRAMSCI, 1977, p. 312).

Difunde-se um estado de espírito pragmático, imediatista, utilitário, cínico, que tende a subestimar a riqueza do significado das criações culturais. Generaliza-se uma crise de valores. Em resoluta oposição a essa tendência, o filósofo não hesitava em reivindicar a “honestidade científica” e a “lealdade intelectual” (GRAMSCI, 1977, pp. 1.840 e 1.841).

As criações dos sujeitos humanos no nível supra-estrutural não se deixam reduzir a explicações sociológicas (e Gramsci critica duramente a redução do marxismo a uma “sociologia”, que o russo Bukhárin teria tentado fazer). Não se pode ignorar a autonomia – relativa, mas insuprimível – que se manifesta na criação cultural, nas opções ideológicas.

Gramsci exemplificava com um episódio extraído da história da Igreja:

“Na discussão entre Roma e Bizâncio sobre a proveniência do Espírito Santo, seria ridículo procurar na estrutura do Oriente europeu a afirmação de que o Espíto Santo provém somente do Pai e na estrutura do Ocidente a afirmação de que ele provém do Pai e do Filho. A existência e o conflito das duas igrejas dependem da estrutura de toda a história, mas no caso elas puseram questões que são princípio de distinção e de coesão interna para cada uma delas. Podia acontecer, contudo, que qualquer uma das duas igrejas tivesse afirmado o que a outra afirmou; o princípio de diferenciação e conflito continuaria a ser o mesmo. E é esse problema da distinção e do contraste que constitui o problema histórico e não a bandeira casual empunhada por cada uma das partes” (GRAMSCI, 1977, p. 873).

As representações não se deixam reduzir às condições em que se encontravam seus criadores no momento em que as criaram. E também não devem ser consideradas imutáveis na forma que assumiram na cabeça das pessoas que as adotaram.

Por isso, Gramsci não abandonava, em momento algum, sua convicção de que as representações, as idéias, as formas da sensibilidade, os preconceitos, as superstições, mas também os sistemas filosóficos e as teorias científicas precisavam sempre ser pensados historicamente, do ângulo do “historicismo absoluto”.

O sujeito humano existe intervindo no mundo, sendo constituído pelo movimento da história e, simultaneamente, constituindo esse movimento. Mesmo quando amplos setores da população de um país ficam reduzidos a uma situação de miséria material e espiritual, mergulhados nas formas mais empobrecidas e limitadas do “senso comum”, não se deve perder de vista o fato de que eles continuam a ser integrados por sujeitos humanos.

Lidando com sujeitos humanos, é impossível eliminar totalmente de modo irreversível a margem de opções que as pessoas são levadas a preservar e anseiam por ampliar. Nos Cadernos do Cárcere se lê a observação feita a respeito da situação intelectual do “homem do povo”, que não sabe contra-argumentar em face de um “adversário ideologicamente superior”, não consegue sustentar e desenvolver suas próprias razões, mas nem por isso adere ao ponto de vista do outro, porque se identifica solidariamente com o grupo a que pertence e se recorda de ter ouvido alguém desse grupo formular razões convincentes que iam numa direção diferente da que está sendo seguida pelo seu contraditor. “Não recorda os argumentos, concretamente, não poderia repeti-los, mas sabe que existem, porque já lhes ouviu a convincente exposição” (GRAMSCI, 1977, p. 1.391).

A história pressupõe, então, não só a ação dos líderes e a atuação dos de “cima”, mas também a ineliminável possibilidade da intervenção ativa e consciente dos de “baixo”. Fortalecer essa intervenção era a meta, o ideal do pensador italiano. Sua perspectiva revolucionária o incitava a tentar contribuir para a criação de organizações capazes de atuar num sentido político-pedagógico, capazes de ajudar a população a tornar mais críticas suas atividades já existentes. Sua intenção era a de mobilizar o maior número possível de pessoas para a realização de um programa que resultasse num aumento da liberdade e numa diminuição da coerção, na sociedade.

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. Bibliografia:

GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Edição crítica do Instituto Gramsci, org. Valentino Gerratana. Turim: Einaudi, 1977.

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