
| Reprodução/The Sheik (1921) |
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O amor nos tempos do capitalismo
Que o amor é fonte de felicidade ninguém se atreve a duvidar. Mais difícil é reconhecer que é também fonte de sofrimento. No entanto, boa parte das dores interiores de muitas pessoas têm a ver, precisamente, com os temores, frustrações e desenganos que acompanham a procura e preservação do amor. Que esses sofrimentos não têm unicamente uma origem privada, psicológica, mas que derivam em parte da transformação das estruturas e das instituições sociais, é o que Eva Illouz quer mostrar neste magnífico livro, “O amor nos tempos do capitalismo” (1).
por Ana Marta González
Ao longo das páginas deste livro, Illouz quer mostrar que o amor romântico, tal como o vivem homens e mulheres do nosso tempo, é cenário de um processo paradoxal: por um lado, os indivíduos modernos mostram-se melhor apetrechados que os seus antecessores para tolerar repetidas experiências de abandono, rupturas, engano ou separação, na medida em que se veem capazes de reagir perante tais experiências com desapego, autonomia, hedonismo, cinismo e ironia.
Por outro lado, precisamente porque desenvolveram este tipo de estratégias, privaram-se a si próprios da capacidade de amar com paixão (428).
Novo quadro nas escolhas românticas
Isto tem muito a ver com o facto de os indivíduos se verem, por si só, confrontados com a difícil tarefa de conciliar, mesmo no meio de uma relação, o seu desejo de autonomia com o desejo de reconhecimento que, sob o influxo do ideal romântico, e nas condições modernas de individualização crescente, se espera unicamente do amor do outro e não já – como acontecia outrora – da inserção numa classe.
Sem pretender excluir de modo algum a possibilidade de haver um amor moderno feliz (428), o propósito de Illouz nesta obra foi mostrar os efeitos indesejados que alguns avanços modernos – que ela designa como “a Grande Transformação” – tiveram precisamente no âmbito das relações íntimas. Deste modo, consegue mostrar também a relevância da análise sociológica para compreender a natureza dos problemas que se colocam no terreno, cujas dimensões institucionais e culturais tendemos a passar por alto, precisamente por causa da hipertrofia das explicações psicologistas que dominam a nossa cultura.
O indivíduo moderno é simultaneamente emocional e económico, romântico e racional-instrumental
A ideia que atravessa o livro é, com efeito, similar à que, nos começos do século XIX, levou muitos sociólogos a procurarem razões sociais e não meramente psicológicas ou morais da pobreza. Nesta mesma linha, conjugando o enfoque macro-sociológico na tradição de Marx e Weber com a análise de entrevistas, Illouz torna visível o rendimento cultural de uma sociologia das emoções.
Evitando a tendência para individualizar os problemas, presente no discurso psicológico dominante, e na literatura de autoajuda, Illouz deseja destacar que “as experiências correntes do sofrimento emocional – não sentir-se querido, ou sentir-se abandonado, torturar-se com a distância ou o desapego de outros – estão impregnadas de valores e instituições centrais para os modernos” (429). Assim, por detrás de fenómenos como a desigual atitude de homens e mulheres perante o compromisso, as inseguranças derivadas do difícil equilíbrio entre autonomia e reconhecimento, a tendência das mulheres a autoculpabilizarem-se quando fracassam as relações, etc., há que reconhecer mudanças estruturais e culturais que alteraram profundamente as condições em que homens e mulheres fazem as suas escolhas românticas.
A Grande Transformação
Em último caso, a” Grande Transformação” em matéria romântica residiria numa “transformação da ecologia e da arquitetura da escolha”:
“Uma das transformações centrais do amor na modernidade tem a ver com as condições em que se tomam as decisões românticas. Essas condições são de dois tipos: uma refere-se à ecologia da escolha, ou ao ambiente social que orienta uma pessoa a decidir numa determinada direção… mas a escolha é marcada também por um segundo elemento, que designo como ‘arquitetura da escolha’… esta refere-se aos critérios por meio dos quais se julga um objeto, assim como os modos como uma pessoa examina os seus próprios sentimentos, o seu saber e o seu pensamento lógico, para tomar uma decisão (402).
A revolução sexual deixou as mulheres em inferioridade de condições emocionais frente aos homens
Assim, em contraste com épocas anteriores, em que o processo do namoro era controlado pela família da mulher, o desaparecimento das barreiras culturais e sociais teve um efeito ambivalente: por um lado alargou as possibilidades teóricas de escolha; por outro, fez recair completamente os critérios de escolha sobre os indivíduos.
Illouz ilustra esta ideia, comparando o modo como estava institucionalizado o namoro e o casamento nos séculos XVIII e XIX – para o qual se serve de alguns romances conhecidos de Jane Austen – e o processo de desinstitucionalização posterior, no qual desempenharam um papel chave dois fatores: por um lado, o ideal romântico da afinidade sentimental como ideia reguladora das relações entre os sexos e, por outro, o desenvolvimento do mercado.
Perante a linguagem moral, que servia aos personagens de Austen como código cultural de valores partilhados, a difusão do ideal romântico de afinidade sentimental, reproduzido até à exaustão pela cultura popular, serviu para romper barreiras sociais e económicas na escolha do par. Mas também privou os homens e mulheres das seguranças culturais anteriores, para introduzi-los num calvário de introspeção psicológica – bem explorado pelos psicólogos especialistas que oferecem os seus conselhos nas revistas ou na internet.
Segundo defende Illouz, “o que chamamos ‘triunfo’ do amor romântico nas relações entre sexos consistiu sobretudo em que a escolha amorosa individual independizou-se da rede moral e social do grupo, dando lugar a um mercado de encontros autorregulado” (81).
A ampliação da oferta
Traduzido na linguagem económica de Gary Becker, diríamos que a rutura das fronteiras sociais e culturais se teria traduzido numa ampliação sem precedentes do mercado matrimonial, em que os sujeitos em princípio competem livremente, mas, como facilmente se pode ver, não em igualdade de condições: os homens jogam com vantagem. Em todo o caso, isto explica o segundo dos elementos que, segundo Illouz, alteraram a arquitetura da escolha: a progressiva afinidade entre a dinâmica do desejo amoroso e a dinâmica da economia, e, com isso, a transformação operada pela questão do valor (e o sentimento do próprio valor).
Com efeito, na medida em que o amor e a sexualidade aparecem progressivamente desvinculados de referentes morais ou culturais a respeito do que constitui “um bom partido”, os sujeitos incorporam critérios de valorização cada vez mais superficiais – a aparição do “sexy” como categoria cultural é um reflexo deste processo – e cada vez mais vinculados à dinâmica do mercado: valorizamos mais o que é escasso e menos o que é abundante.
Por aí andaria a razão estrutural de por que os homens, que no século XIX eram os que tinham maior interesse em comprometerem-se – a promessa era uma instituição central da vida social -, agora fogem do compromisso: não é que sejam “seres egoístas por natureza” – um dos propósitos de Illouz, ao colocar em segundo lugar as explicações biopsicológicas, é evitar a tendência para patologizar o comportamento masculino, ou medi-lo segundo um padrão do comportamento feminino -, mas que o contexto em que têm que escolher mulher mudou.
Aplicando a racionalidade económica mais elementar a questões sentimentais, o raciocínio implícito seria: há abundância de mulheres disponíveis, não compensa ligar-se a nenhuma, compensa deixar a escolha em aberto, para o caso de aparecer uma opção melhor. A situação da mulher, pelo contrário, é desde o princípio diversa; para ela corre mais depressa o relógio biológico e em parte por isso, na maioria dos casos – embora as exceções também estejam a aumentar – elas mostram mais disposição em comprometerem-se, de modo que, quando percebem que do outro lado não existe a mesma disposição, a experiência do amor converte-se em fonte de frustrações.
Escolha mais livre e insegura
Mas, como apontávamos acima, a Grande Transformação em matéria romântica afetaria também o que Illouz denomina arquitetura de escolha: desaparecidos os critérios culturais partilhados, o juízo sobre o que constitui um bom partido individualiza-se:
“A transição do pré-moderno para o moderno na escolha de par é uma transição desde significados e rituais públicos partilhados – pelos quais homens e mulheres pertenciam a um mundo social comum – a interações privadas em que o eu de outra pessoa é avaliado à luz de uma multiplicidade de critérios flutuantes como o atrativo físico, a química dos sentimentos, a compatibilidade dos gostos, e a disposição psicológica. (…) A classe social e também o caráter pertencem a um mundo em que os critérios para estabelecer valor eram conhecidos, públicos e acessíveis a todos (…) Dado que o valor social deve agora negociar-se em e através de gostos individuais, e por causa da individualização dos critérios de valor, o eu confronta-se com novas formas de insegurança… por exemplo, que vale como ‘sexy’, ou ‘desejável’ – embora sigam cânones de imagens públicas de beleza – estão inteiramente sujeitos a uma dinâmica do gosto individualizado e por isso relativamente imprevisível” (227).
Por esta via torna-se patente que “o amor romântico heterossexual é um dos lugares onde melhor se aprecia a ambivalência do moderno, porque nas últimas quatro décadas presenciamos tanto a radicalização da liberdade e da igualdade no próprio interior do vínculo romântico como uma radical separação entre sexualidade e emocionalidade. O amor romântico faz-se assim eco de duas das revoluções culturais mais importantes do século XX: por um lado a individualização dos estilos de vida e a intensificação de projetos emocionais; por outro, a economização das relações sociais, a omnipresença de modelos económicos que dão forma ao eu e suas emoções… O indivíduo moderno é simultaneamente emocional e económico, romântico e racional-instrumental” (234).
Certamente, a Grande Transformação não impede que a experiência do amor enquanto tal – no qual estão implícitos a entrega total e o abandono – seja acessível também aos nossos contemporâneos, mesmo quando precedida de uma escolha calculada em chave moderna. Ora bem, precisamente por isso, e precisamente, talvez, porque, em termos de reconhecimento, o amor romântico supõe jogar a vida numa só cartada, o fracasso no amor, por exemplo quando se percebe que o outro/a não está no mesmo nível, altera a vida de um modo mais devastador que em outras épocas, porque neste caso é também a percepção do próprio valor o que se encontra em jogo.
O amor romântico na ficção
Um dos fatores que mais contribuiu para acelerar a Grande Transformação é a enorme difusão dos ideais românticos na cultura popular, através do que Illouz denomina, seguindo Adorno, “a institucionalização da imaginação”, de que uma das primeiras expressões foi o romance.
Uma sociologia cultural do amor não pode deixar de se interessar pela imaginação, “porque esta encontra-se profundamente implicada com a ficção e a funcionalidade e porque as ficções institucionalizadas (em televisão, comics, filmes, livros infantis) são de importância capital para a socialização. Esta ficcionalidade impregna o eu, o modo e a maneira como o eu se modela narrativamente, vive através de histórias e compreende sentimentos que configuram o projeto de vida de uma pessoa”. (376)
Ora bem, a maior parte das ficções que consumimos transmitem uma ideia do amor romântico que predispõe os indivíduos a abrigar expectativas desmesuradas a respeito de outra pessoa e à natureza da relação, que frequentemente contradizem com o caráter rotineiro, altamente racionalizado, da vida quotidiana.
Os pequenos desenganos, as irritações por questões banais, são fenómenos em boa parte derivados do ideal de intimidade associado ao amor romântico – um ideal relativamente recente na história do amor: “até bem entrado o século XIX, as estruturas familiares apresentavam-se de uma maneira totalmente diferente: homens e mulheres não dormiam necessariamente no mesmo quarto; passavam o tempo livre separados e não partilhavam permanentemente os seus sentimentos e vida interior… a institucionalização da intimidade e da proximidade torna possível irritações e desenganos, porque leva as pessoas a concentrarem-se no outro e torna-os menos capazes de se concentrarem na forma cultural das suas emoções” (398).
Em conclusão, a Grande Transformação na ecologia e na arquitetura da escolha, assim como a institucionalização da imaginação, transformaram a própria estrutura do desejo. Para Illouz isto torna-se particularmente visível no modo como se configuram as relações românticas na internet, onde a confluência entre o racionalismo da escolha e o romanticismo da imaginação é patente, e onde a transição entre a imaginação e a realidade se torna especialmente difícil.
Necessidade de uma ética
À luz desta análise, Illouz não tem dificuldade em reconhecer o lado escuro da revolução sexual, que deixou as mulheres em inferioridade de condições emocionais frente aos homens. Com isto não pretende de modo algum restaurar uma ordem social à século XIX, mas mostrar a necessidade de uma ética sexual à altura dos patamares modernos de liberdade e igualdade, que consiga devolver ao amor a sua paixão e o seu significado humano.
“O estado de indecisão acerca do que amamos – causado pela abundância de escolha, pela dificuldade de conhecer as próprias emoções mediante escrutínio psicológico, e pelo ideal de economia – torna difícil o compromisso apaixonado e acaba por obscurecer quem somos para nós mesmos e para o mundo. Por estas razões, não posso aceitar o culto da experiência sexual que invadiu o panorama dos países ocidentais, principalmente porque creio que semelhante visão da liberdade sexual, intensamente coisificada, interfere na capacidade de homens e mulheres para forjarem vínculos intensos e integrais, que nos proporcionem um conhecimento da classe de pessoas por quem nos preocupamos…” (439).
Evitando o moralismo fácil, a que é tão propenso o discurso conservador, Illouz mostra de maneira convincente a necessidade de uma ética que ponha a salvo a profundidade do amor como experiência humana, acessível tanto a homens como a mulheres:
“Em conclusão, este livro sugere que o projeto de autoexpressão através da sexualidade não pode divorciar-se da questão dos nossos deveres para com os outros e suas emoções. Não só devemos deixar de ver o psiquismo masculino como inerentemente débil e desapegado, mas discutir abertamente o modelo de acumulação sexual promovido pela masculinidade moderna, e ao qual aderiram e imitaram com demasiado entusiasmo as mulheres; devemos rearticular modelos alternativos de amor, modelos em que a masculinidade e o compromisso apaixonado não são incompatíveis mas sinónimos” (439-40).
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Notas:
(*) Warum liebe weh tut. Eine soziologische Erklärung, Berlin: Surhkamp, 2011, 467 págs. Why Love Hurts. A Sociological Explanation, Cambridge: Polity Press, 2012, Edição em português do Brasil: Editora Zahar;
(**) Os números de página citados neste artigo correspondem à edição alemã.
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