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A prática de leitura num mundo interconectado
por André Lisboa
em 30/10/2017 na edição 964
[ Texto publicado originalmente pelo Instituto Valor e Verdade (IVV) ]
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“Livros, observou certa vez o escritor Jean Paul, são cartas dirigidas a amigos,
apenas mais longas.“
(Peter Sloterdijk, em ‘Regras para o parque humano’)
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Tenho dedicado os últimos anos a compreender de forma mais profunda o ato da leitura. Pode-se notar pelas minhas pesquisas, que se condensam escritos práticos sobre tal exercício. Sempre fui um leitor razoável, desde criança. Há alguns anos, assumi o título de leitor em atualização.
A citação de Jean Paul, que li em um texto de Sloterdijk, abriu mais uma fenda neste horizonte de diálogo sobre a leitura que tenho observado e apontado para outras pessoas. Quando passamos a entender que livros são mensagens destinadas a nós – futuros leitores, sobreviventes na caminhada da humanidade – ocorre uma sutil mudança, em alguns casos, radical: os livros tornam-se íntimos. Eles se transformam naquele amigo que chega ao nosso ouvido e nos diz: Tenho algo importante a falar. Frase capaz de destituir de sentido, imediatamente, tudo aquilo que nos cerca.
A escrita – a linguagem, as palavras poéticas ou religiosas – foi o caminho pelo qual, desde os antigos, iniciou-se a formação humana. Não à toa, atribui-se aos rapsodos e aos profetas grande importância no surgimento da filosofia (REALE, 2003). Desde os antigos mitos, a nossa alfabetização tornou-se um caminho para a descoberta de amigos ou para a declaração de desafetos, cito Sloterdijk:
Desde que existe como gênero literário, a filosofia recruta seus seguidores escrevendo de modo contagiante sobre amor e amizade. Ela é não apenas um discurso sobre o amor à sabedoria, mas também quer impelir os outros a esse amor.
A experiência da leitura será uma investida em busca deste amor, em busca da carta enviada por um amigo que nos conta as novidades. Ora, quem não teve a felicidade de receber uma carta ou uma mensagem de alguém que muito ama? Um dos eixos discutidos pelo autor é o meio de transmissão desta filosofia de cunho literário.
Se Platão montou diálogos ideais, em que buscava superações de afirmações iniciais, ora, cada época ou cada grupo de amigos utilizou um suporte diferente para enviar suas missivas a seus futuros leitores. Uma pergunta: que tipo de suporte literário moldou a sua infância, caro leitor? A minha foi notadamente marcada pela televisão, pelo rádio, pelas conversas da rua, pelos livros que li.
A filosofia resiste aos seus 2.500 anos de idade, segundo o filósofo alemão, devido à sua capacidade de fazer amigos por meio dos textos. Aprendi a cultivar esta postura desde cedo no caminho da filosofia, por meio de ensinamentos de Sertillagens (2009), de Mortimer Adler (2010), em seu grande convite aos jovens para adentrarem no mundo da Grande Conversação dos clássicos da literatura mundial. Nem se precisa ser um cultor do passado para entender isto. Lembro do lampejo de beleza, no mundo de amargura que era a mente de Holden Caufield, em ‘O Apanhador no Campo de Centeio’, de Salinger (1965):
Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que der vontade.
A aventura educativa de ganhar amigos por meio da leitura da filosofia ganhou muitos nomes, ao longo da história da educação: paideia – entre os gregos, humanitas – em meio aos latinos, civilização, cultura ou bildung. Werner Jeager, no livro ‘Paideia – A formação do homem grego’ (2013), acredita que o termo formação (bildung, em alemão) não seria capaz de abarcar toda a força do que veio a ser a paideia para os gregos. Nenhuma outra palavra seria. Em nossa língua e no nosso pensamento, nenhuma palavra conseguiria. Contudo, a filosofia, em sua missão epistolar de estabelecer contatos entre amigos de diferentes idades, de diferentes lugares, sempre esteve de algum modo ligada com um anseio por formação, pelo diálogo e pela transformação do homem.
Sloterdijk, que responde à carta de Heidegger sobre o humanismo, considera esta um marco na história da filosofia, por já estar consciente de um alcance para além das fronteiras nacionalistas, que haviam sido estabelecidas pelas filosofias burguesas de até então, pela filosofia do próprio Heidegger. O texto do autor de ‘Ser e tempo’ estabeleceu o rompimento de uma barreira estabelecida pela sociedade literária burguesa comum aos estados nacionais, cheios de sua literatura regional, particular. Heidegger escreve sobre o humanismo para toda a humanidade.
Há toda uma consideração a ser feita se pensarmos que a carta do autor do filósofo alemão foi lançada em uma garrafa ao oceano, após a segunda metade do século XX, em que houve a total consolidação dos meios de comunicação massivos-eletrônicos. Sobre tal questão não vou me debruçar neste momento. Importa-me agora relembrar que a leitura é um exercício espiritual. Ligo, assim, este texto ao tema sobre o qual escrevi na primeira temporada da série ‘Filosofia para vida’, publicada no site do ‘Instituto Valor e Verdade’: uma revisão do conceito de exercício espiritual, sobre o qual se debruçaram as pesquisas do filósofo francês Pierre Hadot.
Heidegger e a resposta de Sloterdijk querem de algum modo convocar à necessidade de uma reflexão, que não pode mais ser feita dentro do ambiente particular e local de uma simples nação. Ora, por um lado visualizo com bons olhos a não-preconização dos aspectos regionais dentro da reflexão filosófica – fundamental em tempos em que se tenta cercar a filosofia. Parece-me de algum modo tolo falar em filosofia regional em tempos atuais, apesar de aceitar, sem qualquer problema ou discordância pueril, o nascimento dela entre os gregos nos séculos VI e V antes de Cristo. Seguir tal tendência, por si, só é levantar uma barreira onde deveria haver antes reflexão.
Sob o signo da universalidade, surgiram as mais importantes leituras e diálogos filosóficos que marcaram a história da civilização humana. Caminhamos remontando os trilhos das últimas estações do ocidente, tentando consertar as estradas, aplainando os caminhos da compreensão das mensagens daqueles que antes de nós já se dispuseram a buscar auto compreensão e a se empenhar na construção de uma sociedade sadia – de um mundo interior pleno.
Escrevemos e lemos – dando continuidade a uma proposta de humanismo, à expectativa pela transformação do homem – por um desejo de “saber se subsiste alguma esperança de dominar as atuais tendências embrutecedoras entres os homens”, como escreve Sloterdijk. Este comenta que cada meio de transmissão da cultura, cada meio responsável pelo ensinamento, torna-se um meio que tende ou a humanizar/civilizar, ou a reforçar as tendências destrutivas humanas, inimigos que tendemos a enfrentar sempre que buscamos os auxílios das cartas escritas pelos filósofos.
Sloterdijk, entre outras reflexões, levanta o problema que surge no próprio seio de uma cultura literária: o afastamento entre os letrados e os iletrados, uma das marcas da era técnica e antropotécnica. A resposta heideggeriana é a necessidade de uma reflexão, de uma pastoral filosófica, que tenha como fundamento a história real, que esteja além dos constructos de nossas linguagens e das formas de pensamento. Aqui haveria possibilidade de se indicar uma ligação com a resposta dada pela filosofia concreta de Mário Ferreira dos Santos, pelas filosofias de nomes como o espanhol Xavier Zubiri e o francês Louis Lavelle.
A técnica ou a antropotécnica surge na cultura literária exatamente quando a lettere torna-se o meio e o conteúdo a ser transmitido. Quando se perde a noção de que o valor linguístico da palavra é o elemento que une a realidade e o imaginário, que estabelece o contato real entre os homens. Ora, o valor linguístico a transmitir o ideal de humanidade na paideia grega são exatamente os valores da nobreza e da virtude (areté), narrados pela poesia homérica, pelos feitos dos homens valiosos.
Confusão e temor me invadem quando penso em nossas mídias educativas contemporâneas, na mudança radical que a construção das narrativas imagéticas massivas provocou em nossa forma de contemplar a vida e de nos educar. Escrevo este texto no momento em que minha filha assiste a um vídeo no YouTube. Queridos leitores, podem ficar tranquilos, porque a mocinha de 6 anos já lê muito bem, entoa poemas quase perfeitamente. Porém, Deus sabe a dificuldade que temos aqui em casa neste processo, a solidão que vivemos – ela é uma das poucas crianças a ler sem esforços na turma dela da escola. Eu e minha esposa tomamos pessoalmente a missão de integrá-la na sociedade dos escritores para a humanidade, tarefa à qual devemos nos dedicar mais ainda nos próximos anos.
Apesar disso, sabemos que nossa filha é uma em um universo cada vez maior de crianças cujos pais ignoram sua missão na formação de filhos, de pais que estão distantes da comunidade dos filósofos, dos escritores. De tal modo, pergunto-me: como interpretar a palavra em tempos do vídeo compartilhado, das grandes plataformas cheias de narrativas deslocadas da realidade? Qual será a educação produto desta mídia de cartas eletrônicas que nos ataca como o ar ataca o rosto de uma pessoa numa manhã de verão? Como encontrar verdadeiros amigos?
Pierre Hadot (2014), ao falar sobre a leitura, comenta necessidades hermenêuticas que um leitor de textos antigos deve ter ao se confrontar com eles. Ora, preciso conhecer as estruturas do pensamento do meu antigo amigo que me mandara cartas filosóficas, ter objetividade ao reconhecer os termos, avaliar as diferenças de nossos vocabulários etc. É preciso estabelecer um contrato linguístico, ou ainda, conhecer os antigos contratos linguísticos e a visão da realidade suportada pelo membro daquela antiga sociedade literária. A preocupação hermenêutica é um dever de todo leitor de filosofia.
Mas, diante dos dias sombrios e desconhecidos que nos esperam, a hermenêutica é uma necessidade fundamental para todos em qualquer momento do tempo e espaço, não apenas para os interessados pela arte filosófica e literária que herdamos dos gregos. A leitura – um exercício espiritual capaz de estabelecer vínculos entre homens de diferentes gerações, de domar nosso incontrolável desejo de destruição – torna-se uma necessidade de sobrevivência.
Sloterdijk escreve que o “que nos restou no lugar dos sábios são seus escritos, com seu brilho áspero e sua crescente obscuridade; eles ainda continuam à disposição em edições mais ou menos acessíveis, e ainda poderiam ser lidos, se ao menos os homens soubessem por que ainda deveriam lê-los”. Estamos diante de um mundo em que se perdeu a noção da leitura, da verdadeira leitura. Lemos para ser inteligentes, não para nos transformar; para crescermos pessoalmente, não para crescermos como civilização; lemos para exaltar a inteligência e não para recordar o que nos dizem os amigos do passado.
Assim, esquecemo-nos das respostas dadas, que estão guardadas nos não frequentados arquivos de outrora. Tornamo-nos cada vez mais como os homens de Ulisses, na Odisséia, que foram investigar a ilha dos lotófagos, sem a companhia do herdeiro de Métis: foram destinados a comer a flor do loto, a serem felizes esquecidos do tempo passageiro, a sorrir eternamente como idiotas, a morrer para o mundo e para a existência, coabitando uma vida sem sentido, cheios de alegria, vazios de tudo, puramente vazios.
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. Referências:
ADLER, Mortimer. VAN DOREN, Charles. Como ler livros: o guia clássico para a leitura inteligente. São Paulo: É Realizações, 2010;
HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. São Paulo: É Realizações, 2014;
A filosofia como maneira de viver. São Paulo: É Realizações, 2015;
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013;
REALE, Giovanni. Antiseri, Dario. História da filosofia antiga e pagã. v.1. São Paulo: Paulus, 2003;
SERTILLANGES, A. D. A vida intelectual. São Paulo: É Realizações, 2012;
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação liberdade, 2000;
SALINGER, J. D. O apanhador no campo de centeio. São Paulo: Editora do Autor, 1965.
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