O texto poderia começar assim: “Um jovem empreendedor, que começou a carreira no mundo dos negócios da indústria fonográfica. Marcelo Viegas conquistou patentes e cresceu empresarialmente, saindo de colaborador para sócio da gravadora!” Clipagem da revista Exame? Resumo de matéria “humanitária” de telejornal em sábado à noite, depois de veicular altas doses semanais de caos aéreo, crise hipotecária dos Estados Unidos e um “então, tá!” para os hermanos peruanos e o terremoto que passou por lá? Tinha tudo para ser, caso o Viegas fosse o filho mais novo – formado em Administração e Comércio Exterior na Inglaterra – do maior acionista da Sony Music, ou se a sHort Records passasse, desde o meio da década anterior, longe do incipiente “mercado fonográfico underground”…
A entrevista abaixo mostra um pedaço da história do Rock feito na primeira metade dos anos 90, na Terra Brasilis, recortado a partir da experiência do operário-padrão do parágrafo acima. Criada em 1995 por Fabiano Mutz e Fernando Steler, a sHort, como é mais conhecida, tem no Viegas o seu fiel escudeiro desde 1997, que abraçou a ideia e expandiu as peripécias e periscópios do selo para públicos bem longe de SP, ponto de origem. Peripécias que alastraram o nome da sHort e, consequentemente, o conceito básico de querer e ter a possibilidade de executar o projeto de uma “gravadora”.
Com os ventos que sopravam de Seattle então, proliferaram nomes como Tamborete Records, Laja Records, Monstro Discos, midsummer madness, que somados aos pré-existentes Baratos Afins, Cogumelo Records e outros, foram estimulando e dando (literalmente!)voz a diversos artistas fora do eixo proposto pelas multinacionais do ramo. Periscópio pela função de lançar trabalhos desde a Snooze (Nordeste) aos gringos Closure e Pseudo Heroes, EP’s, desconhecidos sim, mas uns dos protagonistas daquele novo degrau para expansão e afirmação do circuito independente. Olhe que a internet estava começando a pôr as manguinhas de fora, instrumento que logo, logo encurtaria as fronteiras e intensificaria a comunicação entre as extremidades. A mesma Dona Net que encurtou as distâncias entre essa história toda para este bate-papo.
Rolando a tela será possível ter acesso à prosa e às imagens do acervo particular da gravadora e do citado chefe, como já deu pra notar (foto acima), especialmente publicadas para dar continuidade aos materiais produzidos sobre selos e alternativas que têm o que falar.
• • •
Ricardo Santos Oi, Viegas. Como a sHort Records é a bola da vez, no sentido de ser um outro selo entrevistado, e você o cara que está à frente desse trabalho, de onde partiu a necessidade de criar o próprio selo?
Marcelo Viegas A necessidade de criar um selo é oriunda do meio no qual estamos inseridos, que é o meio independente, cujo lema é “do it yourself”.
Remetendo ao caso da sHort, vale dizer que eu não fui o fundador do selo, quem fundou foi a dupla Fernando Steler + Fabiano Mutz (ambos tocavam no Cold Beans). Eles queriam, na verdade, lançar uma fita, isso era 95, mas chegaram à conclusão que alguém precisava tomar a iniciativa corajosa de dar a cara a tapa e se aventurar no universo fonográfico; porque naquela época não havia nenhum lançamento independente no formato cd aqui no Brasil, e a sHort foi pioneira nisso, graças à coragem dos dois e ao dinheiro emprestado pela mãe do Fernando (hehehe).
Nessa mesma época, eu fazia o zine “The Answer” e colaborava com a revista “100% Skate”, ou seja, tinha uma certa penetração tanto no meio musical independente quanto no meio do skate, daí que naturalmente veio uma aproximação com o trabalho da recém-nascida sHort records, divulgando no zine, ajudando a vender os cd’s do Cold Beans, e por aí vai…
Na época do segundo lançamento do selo, a coleta “100trífuga”, eu ajudei intensamente no trabalho de seleção das bandas e montagem mesmo do cd, e após esse lançamento o Mutz resolveu abandonar o barco e fez a proposta para que eu assumisse o lugar dele. Isso foi em 97, e desde então estou aí, quebrando a cara e lançando discos.
RS Quebrando a cara e lançando discos… Mas existem prós nos quase 10 anos de existência, não? O que você percebe haver mudado nesse tempo, desde os selos, passando pelas bandas e público?
MV Sim, sim, é claro que existiram coisas boas, coisas gratificantes, mas muito mais no aspecto pessoal mesmo, aquele sentimento reconfortante de “fiz minha parte”.
Hoje a estrutura do indie é muito maior, muito mais sólida e arrisco dizer que tem muito guri de selo por aí enchendo o rabo de dinheiro lançando banda Emo da moda e afins, mas eu não preciso dessa merda na minha vida! Eu quero dizer para os meus filhos que morri pobre, mas lancei só bandas que gosto e acredito de verdade. O meu orgulho não tem preço!
RS Já que você citou selos lançando Emo, como é o alistamento de novos trabalhos por aí?
MV Cara, a sHort nunca teve uma linha pré-definida e rígida de lançamentos, sempre foi algo flexível e pautado mais pelo meu gosto pessoal e qualidade da banda. Talvez o único padrão seguido é o de intercalar um “medalhão” com uma “promessa”, mas nem isso eu segui à risca ao longo desses anos. Algumas vezes rolou, porque eu captava recursos com uma banda de mais renome e investia em alguma banda mais desconhecida. Mas o critério era mesmo beeem pessoal, nunca tive uma visão de empreendedor atento às necessidades do mercado, até porque a sHort começou numa época em que não tinha mercado nenhum, não é como hoje que a Galeria do Rock é um shopping punk. A parada era outra, era na carta, no zine e na demo!
Falando mais especificamente sobre os discos lançados, tem tudo um pouco na discografia do selo: começou no HC melódico do Cold Beans (numa época em que fazia sentido esse tipo de som), teve continuidade na coleta “100trífuga”, da qual me orgulho muito por ser um registro de época bem representativo e elogiado; depois veio Snooze, banda que gosto muito e de quem sou amigo até hoje… Aí teve Pin Ups, que foi tipo realizar um sonho de pivete, pois sempre fui fã da banda, e teve o “Hateen” também – o “dear life…”, que é pra mim o grande disco deles e o melhor disco de Emocore (do bom Emocore, do Emocore linha anos noventa, do Emo que presta, você sabe do que estou falando, right?) brasileiro. Depois teve o Echoplex, banda foda, complexa e absurdamente boa ao vivo, tenho muito orgulho do disco deles… Teve também Dread Full, (Thee) Butchers’ (Orchestra), enfim…
RS Poderia dizer algumas curiosidades sobre esses álbuns, aquelas emblemáticas como o que mais saiu, o mais disputado, a raridade, a coletânea tal, e se não hesitar, coloque algum “menos” também? Senão vira auto-ajuda…
MV Vamos lá, campeões de audiência: “V/A 100trífuga” em primeiro lugar, até hoje é referência e disputado a tapa por aí… (risos) Depois Pin Ups, “bruce lee”; e o Hateen, “dear life…”; foram esses os que tiveram giro mais rápido, bandas mais populares e tal…
Você pediu uma curiosidade, ei-la: minha amiga Sâmia, sergipana, me disse uma vez que muitas pessoas em Aracaju, muitas mesmo, tiveram o primeiro contato da vida delas com Rock alternativo graças à coleta 100trífuga, que trazia uma banda local, o Snooze. Então muita gente que mora a mais de dois mil quilômetros de distância da minha casa começou a se envolver com essa coisa de Rock graças a um disco que lancei em 1997… Cara, ouvir isso, NÃO TEM PREÇO!!! Eu sou chorão, chorei, fiquei emocionado quando ela me contou isso, eu estava em Aracaju nesse dia, inclusive, então foi uma noite ótima, inesquecível… Só tomei prejuízo financeiro com esse troço de selo, mas é o tipo de coisa que, quando acontece, é mais importante que grana, é um tipo de satisfação pessoal e dever cumprido que não dá pra explicar.
Uma curiosidade negativa da sHort é a maldição que me persegue de lançar bandas que acabam: foi assim com Dread Full, Cold Beans, Pin Ups, Echoplex, então isso atrapalha, principalmente no caso de uma banda como o Echoplex, pouco conhecida, fez com que o cd encalhasse bonito. Acontece, né?
RS Vou pegar dois pontos: um no qual cita que a sHort vem de uma “época em que não tinha mercado nenhum, não é como hoje que a Galeria do Rock é um shopping punk, a parada era outra, era na carta, no zine e na demo”, o outro seria a emotividade ao saber que algum álbum disco chegou a lugares distantes. Quais os prós e contras das novas tecnologias (programas para gravação, cd’s, internet/mp3) no âmbito do Rock, incluindo a abrangência dos atuais modismos e o flanco mercadológico?
MV Não se trata de dizer: as novas tecnologias são uma benção ou uma maldição, elas são apenas inevitáveis! Pouco importa o que eu ou você pensamos sobre elas, teremos que nos acostumar mais cedo ou mais tarde, não é? O romantismo está relacionado a nossa história, porque nós vivemos aquele período; as novas gerações não são culpadas por terem nascido hoje, por não conhecerem a era do vinil, ou das demos, ou dos zines impressos…
Mas ter essa consciência não impede que eu tenha minhas predileções, que eu tenha um certo apego às coisas daquela época (seja lá de qual época do passado estejamos a hablar). Por exemplo, no caso do skate, que também é um universo que faz parte da minha história pessoal: a minha época de ouro, o auge do skate pra minha geração foi o começo dos anos noventa.
Os grandes vídeos, os grandes skatistas, as lembranças mais deliciosas que tenho são dessa época, mas isso não quer dizer que a atual seja ruim, ou sequer inferior àquela. Pra um guri que tá no pique hoje, andando pra caralho, fissuradão, pra ele a época de ouro é hoje.
É um certo relativismo? É. Mas acho que nesse caso ele é justificável e necessário.
RS Eu não quis lidar especificamente com maniqueísmos em relação às tecnologias. Prós e contras sem rimar com julgamento, mas lembrando da coexistência possível (?) entre um selo e o mp3, reprodução da obra em detrimento a comprá-la e contribuir com as bases dos lançamentos independentes, pirataria… Enfim, temas polêmicos e indissociáveis dos papos fonográficos.
MV Eu concordo que a coexistência é possível, eu mesmo sou um comprador de vinil e também baixo umas musiquinhas na net, mas esse apreço pelo vinil, pelo k-7, por essas paradas mais vintage, isso é um apreço da nossa geração, porque nós vivemos tudo isso e criamos raízes, mas as novas gerações tão cagando pra isso… Então o que eu quis dizer é que – saudosismo e romantismo à parte – as novas tecnologias vão derrubar os conceitos e os padrões antigos. Não sou eu que diz isso não, é o Marx no Manifesto Comunista, tudo isso que vemos hoje ele já descreveu lá atrás.
Sobre a moda: a massificação é mesmo uma bosta, mas fazer o quê? Ou melhor, eu faço minha parte que é não compactuar, got it?
RS Se você está certo de que “as novas tecnologias vão derrubar os conceitos e os padrões antigos”, por que insistir num selo, mesmo sabendo que há paixão e quebra de cara, conforme comentou? Faltou a esperada opinião direta sobre MP3, os discos da Short, hipoteticamente, sendo baixados, pirateados… De alguma maneira não dá uma arranhada no seu “fiz a minha parte”?
MV Acho que não arranha o “fiz minha parte” de maneira nenhuma. Pelo contrário, só dá mais ênfase ainda. Afinal, é algo que se refere ao passado, às iniciativas e ações que tive numa época em que o conceito de selo independente ainda não era tão popular e comum quanto hoje em dia. É a tal da vanguarda, modéstia à parte. A sensação de ter feito minha parte permanece intocada. Não fiquei sentado reclamando: fiz meu zine, toquei o selo, colaborei com revistas, montei minha loja, fiz música com minhas bandas…
Sobre os cd’s da sHort sendo pirateados: normal, inevitável, né? Fico até um pouco orgulhoso que as pessoas façam isso, sinal de que existe alguma qualidade, certo? Mas aí, rapaziada: Ainda tenho disponível Echoplex, Dread Full, Jigsaw, quem quiser é só entrar em contato. Preços camaradas como sempre! (hehehe)
RS Pausa no Viegas “empresário”… Quer falar sobre a ästerdon, que está lançando pelos selos Igloo Discos (SP) e Pisces Recs (Bauru/SP), distribuído pela Peligro e tem você no vocal? É a sua primeira participação em banda? Por que a sHort “ignorou” a ästerdon – incompatibilidade do selo com o vocalista da banda ou o valor do passe era alto? (risos) Aproveite e não esqueça do Jornalismo… Formação acadêmica ou preparo físico adquirido como zineiro?
MV A decisão de deixar outro selo lançar minha banda tem dois motivos básicos: 1) a sHort tá parada, inativa, mas não extinta. 2) seria meio estranho trabalhar minha própria banda, um tipo de egotrip que prefiro não ter.
Agora, vendendo o peixe do ästerdon: gravamos no esquema caseiro, em Santo André, nós mesmos produzindo. E o resultado, pelo que escuto, tá agradando quem ouviu a master. Ficou com peso, do jeito que queríamos. O referencial sonoro é mesmo Fu Manchu e Sabbath. Mas cada um da banda colabora com suas predileções e influências. Eu gosto muito de cantores como Morrissey, Mark Lanegan, Jonathan Bunch (Sense Field), Jeff Buckley, Lennon, etc… Não que eu cante como eles (quem me dera), mas leva minha voz prum lado bem melódico e pouco usual no Stoner Rock. O Punkinho (guitarrista) é metaleiro velho, gosta de Slayer, COC, Napalm… Mas também é fã de Stones e tá ouvindo muitas coisas modernas, como Klaxons e Primal Scream (nem tão moderno assim). O baixista Ideia é um grunge nato, fã de Nirvana, Sonic Youth e afins. E como skater, tem a bagagem do Skate Rock, de MC Rad a Faction, passando por Dinosaur Jr. e Firehose. O Viola, nosso baterista e cozinheiro, é fã do Mitch Mitchell (Jimi Hendrix Experience) e sua batera reflete muito isso. Também é fã de Dinosaur Jr., de bandas bagaceiras em geral e de Rocket From The Crypt. Basicamente é isso aí.
Ah, é um EP, 7 sons, arte cabulosa feita pelo AZ (studio 11, de Franca) e eu espero que todo mundo goste.
Quanto ao Jornalismo, um pouco das duas coisas. Na faculdade (Ciências Sociais) eu lapidei meu gosto pela leitura e inclinação pela escrita. Aprendi a ordenar melhor meus pensamentos e ideias, e, ao mesmo tempo, adquiri a bagagem cultural mínima necessária para o trabalho como jornalista.
No fanzinato eu perdi o medo de publicar minhas ideias, de colocá-las em público, o que significa certa responsabilidade, afinal, é uma exposição e tanto. No caso dos fanzines a exposição nem é tão “cabreira”, mas quando você escreve para uma revista como a “Rock Press” ou “100% Skate” (foram a minha escola no jornalismo), aí a coisa muda de figura. São milhares de revistas espalhadas por todo o país, e milhares de pessoas lendo e refletindo sobre as minhas palavras. É muito louco isso. E eu fico feliz e orgulhoso por ser bem aceito pelas revistas e, creio eu, por uma parcela considerável dos leitores.
Pelo menos ninguém me mandou bombas até agora. Atualmente, atuo como redator da 100% Skate e colaborador da “Revista da MTV”. Mas faço freelas sempre que posso pra revistas como “Sport Life” e “VO2 Max”. É uma correria e tanto, mas tem lá suas compensações. Ah, e mantenho meu flog de textos também!
•
. sHort Recs Complete Discography .
. Short 000 – Cold Beans – “fighting together” (1995)
. Short 001 – V/A 100trifuga – c/ pin ups, garage fuzz, primal therapy, etc (1997)
. Short 002 – Snooze – “waking up… waking down” (1998)
. Short 003 – Pin Ups – “bruce lee” (1999)
. Short 004 – Dread Full – “day off” (2000)
. Short 005 – Hateen – “dear life…” (2000)
. Short 006 – Echoplex – S/T (2001)
. Short 007 – Snooze – “let my head blow up” (2002)
. Short 008 – 4Split Jigsaw – c/ White Frogs, Pseudo Heroes, Smalls e Closure (2002)
. Short 009 – Thee Butchers’ Orchestra – “the complete b-side series vol.1” (2003)
. Short 010 – Sensorial – “uma nova chance, talvez um recomeço” (2004)
•
por Ricardo S.
Imagens: Acervo/Marcelo V.
(Publicado originalmente em 2007)