Pessoas paravam em frente à TV naquele dia, afinal, outro longa nacional disputava 4 ‘estatuetas’, como dizem familiarizados os críticos de arte. Tiravam o patriotismo da gaveta cheia de naftalinas, e entre uma zapeada e outra com o Big Brother, torciam já imaginando a Ilha de Caras com todo o elenco do filme na semana seguinte. Isso era o máximo.
Domingão. O pai havia concluído a leitura do dominical, e por isso atualizado das coisas do mundo; assíduo do caderno de cultura, tinha um gosto eclético que ia de Paulinho Moska a Maria Rita, às vezes uma Fernanda Porto caía bem… Noutro canto da casa, a mãe descansava lendo a auto-ajuda mais recente, deixando solitária a TV que reprisava o ‘Saia Justa’, no dia da brilhante discussão sobre a mulher do século XXI ocupando o mercado de trabalho; nos estúdios, a veemência literária da escritora pós-moderna, a jornalista bem-sucedida e a Rainha do Rock. Progesterona acima de tudo.
– “Vou conferir o Big Brother, acho que o Paulo Maurício está apaixonado pela Duda Luciana, a pagodeira”… Pensava apreensiva a mãe.
O caçula, de 14 anos, moleque da era da informática, não perdia tempo. Indignado com a caretice dos pais profissionais liberais, sabia preencher bem o seu dia: mp3, salas de bate-papo, RPGs… Falando em mp3, ele tinha tudo o que somente pouquíssimos dispunham mundo afora – arquivos piratas de shows de bandas do País de Gales num obscuro pub indicado por aquele semanário londrino, sim, essas haviam sido as últimas aquisições. Depois, cabia vestir a camisa de alguma banda desconhecida, costeletas protuberantes, aziago facial e alter-ego. Esse moleque promete, é um gênio! Ah, o petulante adorava trocar farpas com a irmã, esta que rebelde igual a uma das tias, acabara de chegar da Austrália, após 6 meses de intercâmbio cultural com a língua inglesa: saíra para um show de Punk Rock, CPM 22!
Para aqueles dias, uma família privilegiada e consciente dos problemas do planeta. De home theater ligado, Coca Light – já que no dia seguinte o escritório falaria alto – e patriotismo mofado, o pai e a mãe comentavam cada estrela hollywoodiana presente.
– “O que você achou do vestido da Liza Minelli?”. Indagou o pai.
– “Amei, é do Yves Saint-Laurent, só que o Armani da Zeta Jones caiu como uma luva”, retrucava a companheira.
Enquanto o adolescente trocava arquivos com uns amigos virtuais, salvo engano canções dos grupos nova-iorquinos da obrigatoriamente falsa e despenteada safra, a decepção chegava sutil na sala-de-estar. O pai roía as unhas, a mãe já não prestava tanta atenção em modelos e penteados; duas estatuetas perdidas até o momento, o coração palpitava. O x da questão.
– Esse filme é tão bom, por que sequer ganhamos a “Melhor Edição?”, angustiava-se o chefe da casa.
Tempos depois, talvez uma hora, luto nacional nesse lar, doce lar. De novo, o caneco não era nosso. Premiados somente com os bocejos para o dia seguinte, claro, disfarçados das vistas dos clientes, o pai juntava mentalmente os cacos da festa de entrega do Oscar:
– “Não devia ficar preocupado com essas coisas. Hoje, apesar da crise econômica, o Brasil está em crescimento, governado por um operário, o Fome Zero está em pleno vapor, e nem a CPI do Waldomiro Diniz sairá. Posso me orgulhar do país em que moro, democrático, cheio de grana emprestada pelo último acordo com o FMI”, encorajava-se.
O celular tocou. Com o coração repleto do orgulho de ser brasileiro, o pai partiu tranquilo e sem parar nos semáforos, com seu carro de blindagem israelense foi ao encontro da filha rebelde. Ela o aguardava em frente à casa de espetáculos onde recebera boas doses de pura rebeldia; aquela música de protesto e conscientizadora, cavanhaques da moda, tudo garantia que a geração a seguir ganharia o Oscar, perpetuaria novos governos de esquerda, manteria o recorde de produção da soja transgênica, e se bobeasse, a internacionalização da Amazônia. “Se Deus quiser”, pensou ele, que continuava “seria muito progresso, muita ambição; metade disso já seria o suficiente”. Ou o Brasil e o petróleo não eram e sempre serão nossos?
por Ricardo S.
Imagem: Reprodução/www
(Publicado originalmente em 2004)