E de quando em quando, uma nova comoção local ou nacional impregna os canais de comunicação. Não, nada sobre a morte do Cidadão Kane tupiniquim, crianças trabalhando como escravas nas lixeiras e carvoarias, juiz assassinado; a Bandeira Nacional, de novo, foi a bola da vez…
Os Símbolos Nacionais – Selo, Armas e Bandeira nacionais, no caso do Brasil -, são figuras presentes na concepção da maioria dos países, estendendo-se em formatos presentes em partidos políticos, grupos folclóricos, nações indígenas, movimentos sociais, clubes de futebol… Cada agremiação tem o seu estandarte, ao qual devota a sua fé quando o sentimento é original, ou o seu sarcasmo, ao servir-se dela para infestar mentes e empunhar falsas preocupações. Atentemo-nos a este, o estandarte.
Quanto mais organizada a instituição, maior o magnetismo proporcionado por este retângulo de cores e paradigmas específicos, exemplo, a dimensão imperialista que os pavilhões do Reino Unido e dos EUA conquistaram. Difícil negar que nunca tivemos uma calça, uma camiseta ou um livro que tenha estampadas a Stars and Stripes ianque, a Union Jack anglo-saxônica… E a de Cuba, para defensores de suas teses revolucionárias? E a negra com o “A” anarquista? O arco-íris dos homossexuais? Com Suástica nazista…
Para o Poder, eles ganham ares de fomento e caracteres sócio-políticos de acordo com o cenário do momento! Há dias uma nova contenda ‘comoveu’ a sociedade: punks “queimaram a bandeira nacional na capital gaúcha”! Curiosamente em época de reformas e assaltos aos direitos do trabalhador e do pretenso cidadão brasileiro, emerge a notícia como válvula de escape às bravatas (palavra que o governo usa frequentemente) madrugais no Congresso, provando que à noite todos os gatos são pardos. Caladas das noites de agosto. Polícia nas dependências do Legislativo e lágrimas e beicinho trêmulo do bebê chorão e fantoche Presidente da Câmara, ‘esquerdistas’ que dançavam Axé-Music antes de quebrarem os vidros opacos pelos lobbies da minoria abastada que comanda os interesses daquela Casa. Em Porto Alegre, civis indignados com os punks que faziam arder a Verde e Amarela em pleno domingão, claro, antes de começarem os programas das tardes educativas dominicais na TV aberta brasileira.
Na segunda-feira, a indignação chegava aos olhos e ouvidos de quem estava desinformado do imbróglio patriótico. Apresentadores de telejornais devidamente customizados e pregando discursos pseudo-nacionalistas, fajutos, aprendidos em Educação Moral e Cívica, presente dos anos de chumbo. Todos ficaram cegos perante o que continha o estandarte a ser carbonizado pelos anarquistas: a Suástica! Para quem não lembra, na semana que antecedera a esta manifestação, a imprensa alardeou o espancamento de um provável jovem punk por nazistas da América do Sul (pode?)… Comoção da massa? Que nada, coisa de “vagabundos, rockeiros e drogados”, grita a maioria doutrinada pelos telejornais. Nenhuma providência indicada pela mesma imprensa no caso de possível resultado à caça dos brancos bem nascidos das academias de ginásticas, birrentos e de barriga cheia. Queria ver movimento nazi-fascista no Vale do Jequitinhonha, no sertão árido nordestino, ou debaixo das pontes e favelas das cidades em que eles atuam.
De providências falaciosas, esses infortúnios friamente calculados já têm antecedentes, cada um mais dissimulado que outro. Início dos anos 90, o Brasil collorido e do fusquinha topetudo do Itamar, da corrupção descarada, motivaram a indignação do Max Cavalera, à época no Sepultura. Ele e a bandeira nacional travaram um ‘duelo’ que parou na delegacia, local do término do show naquela noite. Só que a batalha entre os dois vinha da necessidade de liberar a insatisfação política, até porque o quarteto mineiro sempre expôs o pavilhão da Terra Brasilis como motivo de identificação no que usavam como roupas, músicas, instrumentos e letras.
O argumento de que seja resguardada pela Constituição Federal, inclusive atribuindo atos criminosos a quaisquer agressões, não isentam estes alarmes da dupla intenção, apta a encobrir a realidade e os genuínos culpados-agressores. Particularmente, não queimaria ou pisaria a bandeira, inclusive por ter um leque expressivo do gênero representando partidos políticos, países algozes do nosso dia-a-dia e reais causadores da dependência em que se encontra o Brasil. O pavilhão é refém de facínoras do cotidiano, a começar pela expressão “Ordem e Progresso”. É cômodo assegurar a culpa aos moicanos “anti-sociais” em detrimento de um mea culpa direcionado ao clientelismo, ao jeitinho brasileiro, aos mentirosos, aos famintos das grandes urbes e sertões, à carência de segurança, educação e saúde, do irmão que trai irmão, das terras concentradas nas mãos de poucos. Tudo isso existe, inclusive governamental, não apenas fruto de movimentos esparsos e “guetos”.
Discutir e tornar manchetes tais dissimulações autorais faz parte do interesse mercadológico dos periódicos, que carecem da satisfação dos patrocinadores, ou claro, dos Três Poderes querendo exibir serviço à população. Resultado: vistas que deixam de ser grossas no momento conveniente, fazendo esquecer da inflação, das composições inter-partidárias, dos aposentados e dos viciados pelo Poder. Pagam os excluídos, seja sobre as vestes espetadas punks, os sem vestes da ponte ou marquise próxima, os manifestantes da esquerda embalada pelo Axé e quebrando vidros no Planalto, os Sem Terra, os Sem Teto, o mínimo sinal de barulho que venha acordar do sono eterno o Gigante Adormecido – o País que pensa que vai pra frente!
Tenho uma em casa. Pequena, todavia engrandecida pelo respeito que tenho à maioria que ela representa. Nela inexistem outros símbolos desenhados (implicitamente sim, óbvio!). Encontra-se nua e crua como a carne e a realidade. Quando a obtive, nada de Copa do Mundo, visita do Papa, Olimpíadas/Pan-Americano, 7 de setembro ou eleições. Pelo respeito às Alices no País do Fome Zero, do vale-gás, vale-leite, vale-tudo, do Criança Esperança e medalha de ouro na concentração de renda. Não é a única, somente uma identidade que a nada se sobrepõe, senão como bandeira-parâmetro ou qualquer outra nação que sofra e tenha direitos outorgados junto à Lei do Mais Forte. Lei do Cão. Lei do Banco Central ou a cartilha que soletra na lição do (sub)desenvolvimento. Para estes, inexistem símbolos nacionais, e sim a alma do povo transformada em ações na Bolsa de Valores e no peleguismo – amarelo da Vergonha, verde da Fome, branco dos colarinhos corruptos, sob um céu azul-poluído, longe de ser de brigadeiro.
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“Quem segura o porta-estandarte, tem a Arte, tem a Arte.”
(trecho de ‘Maracatu Atômico’ – Nelson Jacobina e Jorge Mautner)
Texto + Imagens: Ricardo S.
(Publicado originalmente em 2003)