Exibicionismo & Vigilância


| Reprodução/www |

Por um movimento contra-narcísico

A pandemia trouxe desigualdade e captura extremas. Estar em casa é privilégio e prisão: cada encontro produz dados para nos vigiar, domesticar e vender. Contra a cultura das selfies, sugere-se estilhaçar os espelhos – para, enfim, enxergar

por Veridiana Zurita

Eu; uma mulher cisgênera e branca, privilegiada, em pleno exercício de quarentena, dirijo meu carro pra fazer compras no supermercado. Lá, sou recebida por Daila; uma jovem negra, que ocupa um dos muitos sub-empregos gerados pelas demandas de higiene na pandemia. Daila, aparentemente sorridente por detrás da máscara, aliviada por ter um emprego e ao mesmo tempo apática pela repetição do trabalho que exerce, higieniza minhas mãos e assim sucessivamente as mãos e carrinhos dos muitos consumidores que flanam do estacionamento através das portas automáticas e transparentes pra dentro do mercado, pra que possamos fazer nossas compras de forma segura enquanto Daila se coloca em risco. Passamos por Daila sem titubear, como se Daila sempre estivesse estado ali, ou como se sua aparição fosse instantânea assim como a de uma nova mercadoria a ser consumida, ou como se na verdade sua presença não nos importasse já que o foco são nossas compras porque nada pode faltar na volta pra casa. Normalizamos a precarização do trabalho de Daila, normalizamos o risco da vida de Daila uma vez que o “importante” são nossas mãos limpas, carrinhos higienizados, nossos corpos seguros, a não interrupção da produção de alimentos em larga escala e nossas compras feitas. Nessa atividade corriqueira de consumidores normalizamos a presença de Daila e a nossa em nome da continuidade de uma lógica de produção e consumo que não pode parar. Nessa situação, que se quer banal, invisibilizamos Daila, naturalizamos nossas demandas e nos tornamos cúmplices de um sistema que redimensiona sua capacidade de captura e reorganização da força de trabalho através da atualização do racismo.

Com minhas compras feitas loto o porta malas do carro com a ajuda de uma colega de Daila, também mulher, também jovem, também negra, e volto pra casa. Lá, sou recebida pelos três adultos, duas crianças e uma adolescente com quem divido o espaço doméstico em período de isolamento social. As crianças são levadas pra fora da casa, como medida de proteção contra a possibilidade de contágio pelas compras que ainda precisam ser meticulosamente higienizadas antes de guardadas na geladeira.

“A casa da gente nunca foi tão importante. Agora a casa é academia. Casa é palco. Casa é restaurante. Casa é escola. Casa é parque. Casa é escritório e também happyhour. Casa é o melhor lugar para estar agora. Sua casa é tudo. E você pode contar com a gente pra tudo o que você quiser fazer em casa”. São essas as palavras usadas no comercial da nova geladeira Electrolux, que interrompe uma das muitas lives que tenho assistido durante a quarentena. Sim, eu tenho uma geladeira Electrolux. E por causa dessa compra o algoritmo do YouTube irá eternamente invadir minha navegação online como um vírus do consumismo.

A casa ofertada no comercial é a narrativa exemplar do neoliberalismo e que encontra no isolamento social seu apelo máximo. A casa, que pode ser tudo e onde tudo é possível, sintetiza o espaço perfeito pra que produtividade e consumismo entrem em simbiose total. É nessa casa, e em plena pandemia, que o Capitalismo redimensiona sua incessante captura de todo e qualquer fragmento de tempo-livre. Fique em casa, não perca tempo, adapte cada canto e afeto de sua intimidade em ferramentas de trabalho, não há pausa possível, sua casa pode ser tudo assim como você, produza, consuma, compre uma geladeira, lote-a de comida e fique segure, o resto é detalhe. O que o comercial impõe ao desejo é que na produtividade e no consumismo não há limites, tudo é possível e qualquer crise superável.

O que os publicitários do tal comercial entenderam muito bem é que será preciso redimensionar o “estilo de vida” a ser consumido durante a pandemia pra que a fetichização da tal geladeira e tudo o que cabe dentro dela não perca seu apelo. O fetichismo da mercadoria nunca foi tão importante pro acúmulo de capital já que esconder aquilo e aqueles que estão por trás da produção e consumo em larga escala é fundamental pra ofuscar nossa consciência sobre o real motivo de existência da Covid-19 e sua pandemia.

A Covid-19 vem nos mostrar que assim como sua presença, sua capacidade de contágio são consequências diretas do modo de vida que o Capitalismo nos impõe e do qual somos cúmplices.

O que experienciamos e testemunhamos durante a pandemia é a agudização de desigualdades e precariedades sociais já existentes muito antes da Covid-19 aparecer. O surgimento do vírus, a aceleração de seu contágio e a incapacidade deliberada do neoliberalismo em acolher as populações mais vulneráveis com serviços básicos, escancaram a violência de um sistema que nos inebria com a sedutora promessa de que o consumismo nos garantirá liberdade. Não há liberdade no Capitalismo, o que há é a sua atualização como produtor de mortes. E enquanto vidas humanas e não-humanas são drenadas para que possamos consumir ilimitadamente (afinal “livres”), o planeta entra em colapso através da criação de um vírus (ele não surge mas é criado) e do gerenciamento de sua pandemia (ela não acontece por si só mas é permitida e acelerada). Consumimos o planeta e as vidas colocadas a serviço da produção ininterrupta enquanto alienados pela promessa de liberdade que nos é vendida a cada instante, todos os dias e noites, inclusive enquanto dormimos, afinal a captura de nossa subjetividade é a principal ferramenta para que justamente nosso inconsciente esteja ocupado pelo desejo insaciável do consumismo. E pra que essa produção e consumo em escala globalizada não seja interrompido o aparato de alienação aprimora suas narrativas pra que continuemos a acelerar uma máquina que quer encobrir acima de tudo qualquer indício sobre a origem das crises no Capitalismo.

Aqui estamos, vivendo o abismo onde o consumismo globalizado nos levou. Aqui estamos, nesse redemoinho pandêmico, uns seduzides pela promessa de um ilimitado espaço doméstico enquanto outres são excluídes dos cuidados emergências, como o isolamento social, pra continuarem trabalhando nos serviços considerados “essenciais” já que a máquina-capital não pode parar.

O privilégio de classe da quarentena evidencia um sistema que diante da crise reafirma as vidas matáveis e as que podem viver mas que também encontra no isolamento social laboratório pra continuidade de exploração da força de trabalho no espaço doméstico.

A casa segura e ilimitada do comercial é a imagem cínica de um sistema que celebra o privilégio da quarentena, a contínua exploração de quem é excluíde dela assim como de quem nela pode estar. Dentro ou fora do isolamento social, o Capitalismo já redimensiona a organização da força de trabalho e de acúmulo do capital.

Para aqueles que tem o privilégio de ficar em casa a ideia de que estamos em pausa, suspensão ou momento de interrupção da suposta normalidade pré-pandemia é pura ilusão. A crise do Capitalismo não implica sua interrupção, muito pelo contrário, o sistema supera os limites trazidos pela crise quando acentua ainda mais as estruturas de normalidade que nos trouxe até aqui.

É também no isolamento social que o Capitalismo redimensiona sua aceleração, colonizando o espaço doméstico com as demandas do trabalho remoto, com as imposições do ensino à distância que enraízam ainda mais a educação como privilégio e escancara todas as intersecções de classe, raça e gênero que a hiper-exploração tenta encobrir, escamotear, apagar. Nunca estivemos tão produtives e os privilégios de classe, raça e gênero nunca foram tão latentes.

Tão importante quanto as palavras são as imagens usadas no tal comercial. Trata-se se uma sequência de celebrações do espaço doméstico e que re-encenam vídeos caseiros compartilhados nas mídias sociais idealizando o lar como refúgio de segurança. Mas qual é a casa que tá segura? Que casa é essa que aparece como modelo de cuidado, afeto em família, e segurança? Que família é essa? Que casa aparece se sobrepondo e apagando todas as outras negligenciadas por um sistema político-econômico que as precariza e que dentro delas até mata? Que casa tá salva? E mais importante, que classe é essa que festeja o cuidado do lar seguro e com uma boa geladeira? É a casa da branquitude e da heteronormatividade, onde a romantização do isolamento social naturaliza o espaço doméstico e encobre todos privilégios históricos e de manutenção de um sujeito universal. Fique em casa, fique salve, compre uma geladeira, chame um delivery e, mais importante, tire fotos, faça selfies, produza conteúdo que alimente uma máquina de dados chamada Big-Data. Exiba-se. Vigie-se.

Há pouca diferença, senão nenhuma, entre as imagens do comercial da tal geladeira e da grande maioria dos posts nas timelines de mídias sociais como Instagram e facebook. Desde que a pandemia começou e um terço da população mundial pôde exercer o isolamento social, o uso das mídias sociais e a produção de conteúdo nelas se acentua vertiginosamente. A narrativa de superação viraliza nas redes. O conteúdo e estética das imagens produzidas nas mídias sociais é facilitada pela criação acelerada de aplicativos que orientam sujeitos e organizam seus afetos no isolamento social. Na vida cada vez mais digitalizada a promessa de que todo limite é superável predomina. É como se não houvesse falta possível.

Essa narrativa é de uma certa classe e raça. É a classe média-alta e branca que viraliza nas redes um imaginário de romantização do isolamento social e de superação da pandemia, mimetizando um estilo de vida subsidiado historicamente pelo pacto narcísico da branquitude [1]. Entre cada selfie compartilhada e a espera por “likes” o narcisismo vai se enraizando enquanto sintoma de uma sociedade que não tolera a falta. Nas mídias sociais assistimos a um melodrama de superação da pandemia, mesmo que ainda imerses nela. Superar qualquer crise, qualquer ameaça de falta, imediatamente, custe o que custar e em detrimento de quem for, através de todos os aplicativos que se façam necessários e, especialmente, capturando e compartilhando tais imagens de superação é dinâmica central dentro do Capitalismo de Vigilância (Zuboff) e sua sociedade narcisista.

Ficar em casa pra quem pode tem sido, sim, um esforço coletivo pra contenção do contágio da Covid-19. Mas ficar em casa precisa ser também um esforço de contenção de outros contágios. Precisamos conter o contágio de um tipo de vírus que nos aliena da vulnerabilidade do outro já que enquanto uns podem fazer isolamento social outres são assassinades nas ruas e até dentro de suas casas pelo Estado. Precisamos conter o contágio que normaliza a tragédia porque lidar com ela implicaria encarar o fato de que a segurança de poucos depende da morte de muites. Esses contágios são formas virais do Capitalismo e que nos quer indiferentes uns aos outros. Precisamos conter o contágio de uma certa disponibilidade nas mídias sociais, que se acentua durante a pandemia e nos mantêm ocupades, disperses e indiferentes.

No Capitalismo de vigilância onde a extração e mineração de dados coordena uma nova forma de acumulação do capital, ou Big-Data, dentro ou fora do isolamento social, nossa força de trabalho é posta em movimento incessante de produtividade. Disponibilidade nas redes torna-se sinônimo latente de produtividade. Estar disponível nas mídias sociais é portanto atividade central pra que essa nova acumulação continue em movimento. Através de uma dinâmica que nos opera e que ao mesmo tempo operamos, ingressamos na aceleração de produção de conteúdo, compartilhamento ou “mera” navegação na internet. Há aí, nessa aceleração, o contágio pandêmico que o Capitalismo tanto quer, o de um vírus que coloniza o tempo, aniquilando toda e qualquer possibilidade de pausa, paragem ou interrupção de nossa produtividade. Nunca estivemos tão disponíveis e produtives nas mídias sociais. E produzimos o quê e pra quem?

Se as mídias sociais já eram ferramentas fundamentais pra comunicação no cotidiano acelerado, com a pandemia e o isolamento social elas parecem se transformar em ferramentas quase que vitais, imprescindíveis pra continuidade de um modo de vida que simplesmente acreditamos não poder interromper.

A cultura do compartilhamento não é um detalhe solto nesse processo de captura. Muito pelo contrário, compartilhar a própria vida é dinâmica central para que a captura no Capitalismo de vigilância seja totalizante. Compartilhamos dados conscientemente, ou não, sobre seu valor no mercado do Big-Data. Toda essa produção de conteúdo expressa um par essencial pra atualização da acumulação no Capitalismo atual: exibicionismo & vigilância. É através da construção intensiva de uma subjetividade que sucumbe à vigilância pela possibilidade de exibição que o Capitalismo exerce seu caráter máximo de exploração do tempo. Entre o exibicionismo e a vigilância, produzimos. Alimentamos a máquina das mídias sociais, monopolizadas por grandes corporações, com os posts que produzimos e que compõem um banco de dados que nos vigia, não só pra controlar nossos deslocamentos e anseios com fins político-eleitorais, mas pra dar forma, mercantilizar nossos perfis e nos devolver em forma de oferta. Através desse acúmulo de informação, o Capitalismo de vigilância “procura prever e modificar o comportamento humano como meio de produzir receitas e controle de mercado” [2]. Não somos mais somente os sujeitos que consomem mercadorias, mas aqueles que constroem e alinhavam perfis de sujeitos entregues de graça pras grandes corporações (Google, facebook, Apple, microsoft), que os vendem pra seus clientes (empresas e anunciantes) e que depois nos ofertam, dentre muitas coisas, a tal da geladeira. Somos produtores e consumidores ao mesmo tempo; ou ainda “prossumidores” [3]. Incorporamos o sonho dourado pro acúmulo de capital, exercemos o mais-trabalho, aquele que não está incluso em qualquer cálculo de pagamento pelo capitalista mas que garante a mais-valia da mercadoria final em detrimento da exploração de todo e qualquer tempo-livre de trabalhadores. E mais fundamental ainda, produzimos nossos perfis com “cuidadosa curadoria” (referência) de posts porque desejamos. É através desse desejo, da exibição, da comunicação, conectividade e reconhecimento, que o Capitalismo redimensiona sua capacidade de captura. Passamos a depender subjetiva e materialmente da atividade online não somente pra nos comunicarmos mas pra nos entendermos enquanto sujeitos no mundo. A isca pra captura é a incitação desse tipo de desejo, insaciável e narcísico, onde não há desamparo possível já que o Google promete te responder qualquer pergunta e já até aponta pra um futuro onde te dará respostas antes mesmo que você faça perguntas. “Em vez de você precisar fazer perguntas, a Google deve saber o que você deseja e lhe dizer antes que a pergunta seja feita” [4].

Se o desamparo for de fato o único afeto possível pra que um processo de emancipação se abra (Freud), uma sociedade narcísica será organismo inesgotável de captura no Capitalismo de vigilância. É pela não experiencia do desamparo e da falta que uma sociedade de consumidores, ou ainda “prossumidores” se sustenta. Nada pode te faltar, você pode desejar e ser tudo, nada saciará seu desejo, mas manter o desejo insaciável e desejante é a alma do negócio. Não importa te saciar mas sim manter produtivo e ativo o desejo pelo desejado. Na promessa eterna de chupetas, sucumbimos às mídias sociais, produzimos nossa própria captura e os rastros de nossa própria vigilância através de uma atividade que intensifica o limiar entre liberdade e servidão. No anseio de liberdade de expressão, conectividade e comunicação servimos a uma máquina-corporativa que nos vigia através de um algoritmo alimentado, dentre outras formas, pelos nossos próprios perfis e navegação na rede.

No isolamento social, uma janela vertiginosa de conexões que prometem solucionar os limites profissionais, de ocupação do tempo e carências afetivas se abrem nas mídias sociais. As ofertas são muitas e as consumimos à medida que as produzimos. Prossumidores, navegamos na internet como se “livres” mas absolutamente capturades por uma lógica totalizante que nos ocupa e nos escraviza através da disponibilidade inesgotável. Isolades e disponíveis pela promessa de conexão, ficamos em casa. Escravos de facebook, Instagram, YouTube, Twitter e WhatsApp, nos entregamos por completo à uma maquina de produção e compartilhamento de conteúdo.

As mídias sociais sociais não são meras ferramentas de comunicação [5] mas fundamentalmente ferramentas de vigilância, manutenção, produção e consumo de comportamento e sua subjetividade, utilizadas pelas corporações pras quais trabalhamos de graça. Somos prossumidores de uma subjetividade que vai se tornando fetiche à medida que esconde todas as relações de mercantilização que estão por trás de nossa construção enquanto sujeites nas mídias sociais. É o fetichismo da subjetividade [6] onde “na sociedade de consumidores ninguém pode virar sujeito sem antes virar mercadoria” [7].

Celebrar as mídias sociais hoje, em plena pandemia, significa celebrar, deliberadamente, nossa própria captura. Desde que a pandemia começou a curva de produção nas mídias sociais ascendeu com velocidade igualmente pandêmica. Essa rapidez com a qual buscamos solucionar as lacunas de interação social, trocas afetivas e profissionais que a pandemia nos impõe não deveria ser normalizada. A instantaneidade com a qual passamos a adaptar nossas atividades, antes presenciais agora virtualizadas, não pode ser normalizada como solução, simplesmente, prática. Trata-se também, e principalmente, de uma solução ideológica já que tenta encobrir toda sua estrutura de captura em nome da segurança, praticidade, conveniência e pertencimento a um tipo de mundo que se impõe. Essa solução ideológica, expressa a eficiência e rapidez com que o Capitalismo de vigilância adentra nossos corpos e subjetividades como estímulo vital pra que nossa produção e consumo nas redes se intensifique quantitativamente. O que de fato importa é a quantidade e não a qualidade daquilo que produzimos nas redes. Quanto mais dados produzimos melhor é o valor de predição de nossos comportamentos. “Outra maneira de dizer isso é que a Google é ‘formalmente indiferente’ ao que usuários dizem ou fazem, contando que digam e o façam de forma que a Google possa capturar e converter em dados” [8].

Durante a pandemia, sucumbimos ainda mais às mídias sociais porque já não temos outra escolha de comunicação, transmissão de conhecimento, mobilização de redes de solidariedade, manobras contra o tédio e placebos contra a carência do contato social que não sejam mediados pela coleta e mercantilização de nossos dados.

Nessa espécie de espiral de captura e contradições, o sistema que acelera a pandemia colocando lucro antes da preservação da vida, é o mesmo que precariza ainda mais trabalhadores sem o privilégio da quarentena e aquele que coloniza o isolamento social invadindo a intimidade com uma lógica que se confunde com trabalho. Disponíveis, acessíveis e adaptáveis a toda e qualquer demanda de acúmulo do capital, adentramos numa espécie de melodrama virtual de neuróticos aceleradamente produtivos, narcisistas e carentes.

O que se configura nas mídias sociais não é somente uma estratégia virtual de superação das limitações presenciais, mas a construção de uma interação social hegemônica, que organiza e determina afetos e subjetividades através da forma como nos comunicamos, como nos documentamos, como compartilhamos informação, opiniões e sentimentos, como nos comportamos diante das câmeras – sejam elas escondidas ou por nós ligadas -, como falamos e gesticulamos para os chamados seguidores, como aderimos à lógica do like já que seu acúmulo garante o impulsionamento de conteúdo na disputa algorítmica assim como o pico de serotonina no sangue de quem é “curtido” e tudo aquilo que orienta a estética-existêncial-virtual do nosso tempo. Essa construção de uma interação social hegemônica, transborda o virtual e passa a determinar também o social já que experienciamos os encontros interpessoais mediados pelas demandas de captura e compartilhamento em tempo real das mídias sociais.

Se há um tipo de compartilhamento na rede que se sobressai, ou seja, que garante que seu conteúdo acesse um maior numero de pessoas, é porque ganha mais “likes”, agrega mais seguidores e consequentemente garante monetização, ou seja, mais empresas de marketing interessadas em comprar os dados e fazer anúncios naquele contexto devido a sua visibilidade e alcance. Nessa lógica que se retroalimenta o comportamento e a subjetividade de quem produz e consome conteúdo nas mídias sociais vai inevitavelmente sendo previsto e determinado.

Não há fora total. Estamos imersos em um aparato de captura de nossos dados através de todas as mediações digitais que permeiam nossa cotidianidade. “Nada é trivial ou efêmero em excesso para essa colheita: as “curtidas” no facebook, as buscas no Google, e-mails, textos, músicas e vídeos, localizações, padrões de comunicação, redes, compras, movimentos, todos os cliques e palavras com erros ortográficos, visualizações de páginas e muitos mais. Esses dados são adquiridos, tornados abstratos, agregados, analisados, embalados, vendidos, analisados mais e mais e vendidos novamente” [9]. As mídias sociais compõem uma parte importante desse aparato. É nelas que negociamos as fronteiras entre público e privado e onde a noção de privacidade vai se tornando cada vez mais plástica, moldável. A cada estratégia nas mídias sociais pra que usuários possam ser mapeados negociamos os limites de nossa privacidade ou sucumbimos sem titubear. As selfies que nos documentam já são o modo operante desse mapa. Nem negociamos mais, “tirar uma selfie” já é como respirar nas mídias sociais. A selfie torna-se um mecanismo de autoexpressão e que supera qualquer diferença de classe, raça, gênero, cultura, religião e orientação política. A selfie é talvez a mercadoria mais bem sucedida de um projeto de sujeito fundamental no Capitalismo de Vigilância. Ela materializa confluências essências pra que a simbiose entre produtores e consumidores seja total e hegemônica. O ato de “tirar uma selfie” já não é mais um gesto isolado mas configura uma cultura em si. Através da cultura da selfie internalizamos nosso papel enquanto prossumidores e ao mesmo tempo mercadoria. Produzimos, consumimos, vigiamos e somos vigiados através de uma única imagem. A selfie. Do militante de esquerda mais radical até o apoiador mais ferrenho de Bolsonaro, a selfie é uma constante. Isso não é um mero detalhe mas a arquitetura de uma produção social que inebria os usuários com ideia de pluralidade, mas que organiza e determina tais diferenças a partir de um mesmo formato. A selfie é apenas um “detalhe” dentro das muitas atividades online, caracterizadas como Small-Data e capturados para o acúmulo do Big-Data. Mas esse detalhe é essencial pra que a “subjetividade da autodeterminação” [10] – do sujeito referência de si e de tudo aquilo que é espelho – predomine nas redes em contínua reprodução do mesmo. A selfie materializa com sucesso essa subjetividade que busca, produz e consome nas redes respostas pra “necessidades individuais de autoexpressão, voz, influência, informação, aprendizagem, empoderamento e conexão”. A selfie é em si mesma, desde a ação de sua captura até a repercussão de seu compartilhamento, a materialização de uma subjetividade em constante produção de um tipo de interação, seja ela virtual ou presencial. Na selfie e através dela há uma espécie de economia narcísica sendo colocada em movimento, nutrindo e fortalecendo uma “cultura de vigilância” [11]. Eu me posto, você dá um like e me reproduz. Já não precisamos de uma mão externa ou instituição que nos vigie, somos nós mesmos vigilantes e vigiados. Nessa dinâmica de retroalimentação sujeitos operam os mecanismos que os vigiam pra acessarem a percepção de si mesmos. Essa é a chave de ouro para a acumulação de capital no Capitalismo de Vigilância.

Quando esse meio é o que nos parece restar como ferramenta de comunicação em período de isolamento social, a inevitabilidade de sua captura se intensifica. Como ocupamos esse meio e como ele nos ocupa é a encruzilhada.

Ficar em casa e fazer o isolamento social com dignidade mínima não é uma escolha mas um privilégio de classe e todas suas intersecções de raça e gênero. No Brasil – onde enfrentamos duas crises ao mesmo tempo; a crise político-social e a crise sanitária – as contradições do isolamento social são ainda mais complexas. O isolamento social expõe o privilégio de uma classe em detrimento daquela obrigada a trabalhar enquanto é ainda mais precarizada durante a pandemia por um governo que nitidamente usa o genocídio como ferramenta de superação a curto prazo da crise. Nesse cenário as ruas precisam ser ocupadas como forma de resistência popular ao projeto genocida e o isolamento social, de poucos, precisa muitas vezes ser repensado. A preservação da vida é fundamental, mas a necessidade de resistência nas ruas nos obriga a fazer perguntas anteriores: que tipo de vida é essa que estamos dispostos a preservar? Iremos encarar a crise do Capitalismo como limite que nos faça mobilizar insurgências por outros mundos ou sucumbir ao redimensionamento contínuo que o Capitalismo opera através de sua própria crise?

Se a internet se mostra como principal meio de comunicação e mobilização em época de pandemia, será possível politizar esse meio a ponto de resistir à captura de nossa disponibilidade constante nas mídias sociais?

Diante da dupla crise que vivemos no Brasil, o isolamento social é um paradoxo. Ficar em casa escancara o privilégio de classe da quarentena e esvazia as mobilizações em solidariedade a todes que já estão nas ruas, exercendo os trabalhos considerados “essenciais”, explorades e precarizades por um governo que acelera a pandemia através de sua política genocida. Ao mesmo tempo a disponibilidade nas mídias sociais acentua uma economia de compartilhamento onde a superação individual dos sujeitos em suas casas predomina. As relações interpessoais nas ruas perdem seu caráter de atualização das relações virtuais e a fetichização de um sujeito imune e protegido se sobrepõem à realidade de vulnerabilidade daqueles que não podem estar em casa durante a pandemia. No isolamento social, as relações interpessoais nos espaços públicos já não interrompem mais a continuidade idealizada das relações virtuais. A vulnerabilidade do outro já não é mais confronto diário mas informação virtual que acesso ou não, dependendo do meu desejo de consumo nas redes. A sociedade narcísica se intensifica entre selfies e compartilhamento de imagens de superação individual dentro do espaço doméstico, celebrado, “curtido” e idealizado.

Mas o que a Covid-19 escancara é o adoecimento da sociedade enquanto corpo coletivo e em consequência de um projeto civilizatório desenvolvimentista que se quer infinito em um planeta finito. O que a pandemia nos obriga a ver é que não há manobra individual que imunize o sujeito de sua capacidade de contágio se não encararmos a economia humana e os ecossistemas do planeta como um mesmo metabolismo. Inevitavelmente, o cuidado de si implica o cuidado do outro e de todas as outras espécies.

O habitat de animais silvestres é aniquilado pelas pastagens de animais que consumimos, a patogênese nasce, migra entre corpos de animais não-humanos até finalmente contaminar animais-humanos e matar principalmente aqueles precarizades pelo mesmo sistema. A Covid-19 poderia ser uma vingança bactericida contra o sistema que a acelera. Mas esse afeto é demasiado humano para uma bactéria. A Covid-19 é na verdade o espelho de uma certa humanidade sustentada pela ruptura metabólica que seu processo civilizatório impôs ao planeta.

Olhar nesse espelho é o processo que se abre. Olhar nesse espelho é entender que racializamos corpos, que hierarquizamos gêneros, subalternizamos classes, classificamos espécies, destruímos biomas inteiros e interrompemos ecossistemas em função de um projeto civilizatório que se quer insuperável. Pra olhar é preciso coragem e não alienação narcísica. É preciso reconhecer que somos cúmplices de um sistema que adoece a todes mas que escolhe os poucos que podem viver em detrimento dos muites que devem morrer. Olhar nesse espelho é dimensionar os privilégios que legitimam a vida de uns e autorizam a morte de outres. Olhar nesse espelho precisa fortalecer o desmoronamento de uma certa humanidade que se quer hegemônica. Olhar nesse espelho precisa mobilizar a desconstrução do sujeito branco-hetero-cis-neurótico, imposto enquanto identificação universal pra que essa certa humanidade perdure. Olhar nesse espelho precisa ser um ato que denuncia o pacto narcísico da branquitude e que tanto ocupa as mídias sociais. Para olharmos nesse espelho será preciso quebrá-lo. Estilhaçar a imagem que universaliza a branquitude enquanto humanidade. Escutar cada fragmento de vida humana e não-humana silenciada, invisibilizada e apagada no percurso de universalização de uma imagem que se quer hegemônica. Observar os cacos com coragem e honestidade histórica por um esforço coletivo que denuncie o apagamento dos muitos corpos que precisaram e precisam morrer pra que a imagem de um certo sujeito seja refletida, desejada, “curtida” e reproduzida como contorno uniforme e universal.

Se houver alguma brecha nas mídias sociais, já que não há fora possível na captura de dados que ela aglutina, que seja por um movimento coletivo contra-narcísico. Que adentremos na aventura algorítmica por uma sabotagem da cultura da selfie, das imagens que celebram o empreendedorismo do Eu e das narrativas de superação meritocráticas. E mesmo que se formalmente o corporativismo digital seja indiferente ao conteúdo de nossa produção nas redes, desde que estejamos produzindo, será possível ocupar as mídias sociais com conteúdos que disputem a consciência de seus usuários em direção à quebra dos algoritmos de um sistema que insiste em nos mercantilizar? Se é pra estar ali, já que a sociabilização das mídias sociais predomina, que seja por uma resistência tecnopolítica as iscas de pertencimento que elas impõem. Se é pra sucumbir à disponibilidade que as mídias sociais demandam que seja pela mobilização de conteúdos que resistam à internet enquanto um playground corporativo e que a fortaleça enquanto bem comum.

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[1] Maria Aparecida Silva Bento, PACTOS NARCÍSICOS NO RACISMO: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público.

[2] Shoshana Zuboff, “Big Other: Capitalismo de Vigilância e perspectivas para uma civilização de informação.

[3] BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo.

[4] Fragmento retirado de documentos escritos por Hal Varian, principal economista da Google e analisados por Shoshana Zuboff, no artigo “Big Other: Capitalismo de Vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. Pag 49.

[5] Paul B. Preciado, Aprendendo com o Vírus.

[6] BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo.

[7] BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo. Pag 20.

[8] Shoshana Zuboff, “Big Other: Capitalismo de Vigilância e perspectivas para uma civilização de informação.

[9] Shoshana Zuboff, “Tecnopolíticas da Vigilância: Perspectivas da Margem / Big Other: Capitalismo de Vigilância e perspectivas para uma civilização de informação”. Pags 31/32.

[10] Shoshana Zuboff, “Tecnopolíticas da Vigilância: Perspectivas da Margem “Big Other: Capitalismo de Vigilância e perspectivas para uma civilização de informação”. Pag 31.

[11] David Lyon, “Tecnopolíticas da Vigilância: Perspectivas da Margem / Cultura da Vigilância: envolvimento, exposição e ética na modernidade digital”. Pag 153.

{ Outras Palavras }

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