O Exorcista veste a 9

Na quinta-feira passada, 4 de abril, entrevista ao vivo com o jogador Casagrande ia ao ar, direto da CBN São Paulo.

No estúdio, o centroavante, mais os jornalistas Juca Kfouri e Fabíola Cidral bateram bola e o ouvinte pôde conhecer, estimulado pela divulgação de um livro, não apenas os contratempos lisérgicos de alguém.

Os puritanos, os usuários, os aparentemente neutros, ninguém fica indiferente quando sai do discurso pré-fabricado e vê como a vida é preenchida nas entrelinhas.

A irmã que morre jovem, o amigo que anos depois segue o mesmo caminho, a torcida que já não o aplaude em estádios – mas nos semáforos, restaurantes…

Simples assim, aos olhos da maioria.

Porém, no íntimo, o “simples assim” varia com a estrutura cultural, psicológica, cada indivíduo com a sua via.

Mas pensar tanto não é necessário. Fácil é apregoar o “com tanto dinheiro, fama, como é que o cara pode se acabar assim?”, “se ao menos fosse um moleque de rua!”, escolher um carimbo, colocá-lo na testa do analisado, sob o disfarce da opinião e de que se importa com o alvo da mesa de bar da vez. Procura-se a próxima Coréia do Norte, “blogueira cubana”, temas agendados para (e por) ignorantes que perpetuam a truculência.

Bem assim com o “Casarão”, diria um amigo de infância. Basta procurar os “comentários” nos links que anunciam o lançamento do livro… os que rasgam a seda pelo time do Parque São Jorge, pau a pau com os que cospem palavras na cara de quem precisa de auxílio, e há os raros, que saem dos clubes por onde jogou e vão pela pessoa, pelo Rock, pela simpatia. Pelo pedido de ajuda.

No final da noite, chegou até o blog o link do bate-papo, tudo que saíra só em áudio, agora (ou acima, o vídeo!) mostrando as expressões de entrevistadores e entrevistado. O endereço, do ‘Blog do Juca’, trouxe um texto brilhante, que não esquece de, junto das relações de poder que explicam a força do Futebol no Brasil, a importante condição de ‘artilheiro’.

Heleno, Pernambuquinho, Animal, Mário Sérgio, Serginho Chulapa… Casarão!

Artilheiros. (Ricardo S.)

. . .

Casão

por Luiz Guilherme Piva

Gilberto Freyre gostava de futebol e acreditava ter surgido uma forma brasileira, única, de se jogar.

Derivada da mestiçagem entre brancos e negros no latifúndio do engenho, essa raça mestiça joga como quem dança, diz Freyre, improvisando passos e movimentos – assim como na capoeira o brasileiro, mestiço, luta como quem dança.

Não sei se o Raymundo Faoro gostava de futebol.

Mas um devoto dele, o jornalista Mino carta, gosta.

Também acredita num tipo brasileiro de jogo, mas acha que ele não existe mais há muito tempo – nem mesmo na Copa de 1982 ele teria ressurgido, exceto como alucinação, demônio a enfeitiçar e iludir.

Faoro e Carta – suponho, arrisco – não gostam muito de Gilberto Freyre, dado que o intelectual pernambucano faz uso de conceitos culturalistas, raciais e ambientais para – segundo o pensamento mais científico, weberiano, marxista – “justificar” a escravidão e as relações dóceis e carnais da miscigenação entre senhores brancos e escravos negros.

Mas veneram o conceito-chave de Freyre: a Casa Grande, local do poder do senhor, do patriarca, que a tudo domina, que a tudo incorpora, que substitui o Estado, as instituições e a sociedade para fundar a base da organização econômica (grande propriedade), social (concentração da riqueza e vasta pobreza ) e política (o poder de poucos).

Faoro, repetido por Carta, acha que a Casa Grande é o símbolo, a fonte, a concreta configuração dos “donos do poder” no Brasil, que seriam, desde sempre, os mesmos, os que dominam, exploram, controlam o Estado, a sociedade, a política e o povo.

A Casa Grande, dizem os dois, é que impede, com mão de ferro ou com luvas de seda, a mudança, a transformação social e a ascensão dos explorados – antes escravos, depois operários e miseráveis, o que certamente inclui a maioria dos jogadores de futebol.

Curiosamente, Freyre, ao falar de futebol no prefácio do livro de Mário Filho (O negro no futebol brasileiro), afirma que o futebol no Brasil se institucionalizou e foi aceito pelas camadas sociais que outros chamariam de dominantes (ou de “estamento”, de donos do poder).

Isso, segundo Freyre, ajudou a pacificar o povo brasileiro, que, sem o futebol, certamente manifestaria seus impulsos irracionais e violentos, ameaçando a ordem social o poder instituído.

Juntando tudo, dos três autores, por minha conta: o povo brasileiro, mestiço, forjado nos intercursos raciais entre a Casa Grande e a senzala, joga um futebol único, improvisado, dançado, o qual, ao mesmo tempo, como a própria miscigenação, apascenta seus instintos revoltosos e assegura o domínio permanente dos donos do poder, a Casa Grande.

Só que o Casagrande, o Walter Casagrande Júnior, o Casão – que traz no nome o que Freyre considera a fonte do poder e da miscigenação pacificadora e do que Faoro e Carta identificam como o dominador ex-machina todo-poderoso, excludente e perverso em relação ao povo e à democracia – é um enorme lutador pela liberdade, a democracia, o prazer, as conquistas, as vitórias e a justiça.

Casagrande jogou futebol no Brasil e na Itália com o jeito vibrante, aguerrido e contagiante que Freyre, Faoro e Carta não viam nem veem no povo brasileiro.

Ele fez do futebol não uma expressão do apascentamento das massas ao jogo e ao jugo dos donos do poder, mas a forma mesma de mostrar a luta, a revolta, a consciência, a capacidade de enfrentar, atacar e vencer que o povo brasileiro vem mostrando e impondo ao longo dos anos aos demônios egressos das Casas Grandes.

E com isso derruba as teses culturalistas de Freyre (que acredita ser possível o convívio manso ditado pela Casa Grande) e as teses metafísicas de Faoro (que desacredita de qualquer possibilidade de mudança, dado o poder supremo, opressor, imobilizador e eterno do demônio da Casa Grande).

Casagrande é o nosso artilheiro – o que abre fogo contra o inimigo.

O que vai na frente, apanhando, levantando, se ferindo, se recuperando e batendo, fuzilando, vencendo, deixando demônios, donos do poder, faoros, cartas e freyres imersos na alucinação do conformismo do povo futebolista do Brasil.

E, nessa luta, Casagrande empolga e multiplica os que se orgulham de estar na sua companhia.

Eu sou um deles.

Blog do Juca }

Publicado em 05.04.2013

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