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Freud, narcisismo das pequenas diferenças e cultura do cancelamento
por Francisco Fernandes Ladeira
Tem sido cada vez mais corriqueiro nas redes sociais. Um indivíduo segue determinado youtuber, influencer ou personalidade pública. Concorda com tudo o que ele fala, pois vai em encontro aos seus posicionamentos. Isso massageia o ego, traz conforto intelectual; dá aquela sensação de “estar sempre certo”.
Num belo dia, esse youtuber, influencer ou personalidade pública faz uma postagem ou declaração que desagrada o indivíduo do parágrafo anterior. Pronto! O mundo desabou! É o suficiente para todo aquele “amor” de outrora se transformar em “ódio”. Como pode, alguém de tanta confiança ideológica, de uma hora para outra, não dizer aquilo que quero que ele diga? Quanta decepção!
Assim, os 99% de concordância sobre certos posicionamentos são apagados por causa do 1% de discordância. A solução? Vou “cancelar” o youtuber, influencer ou personalidade pública. Não só eu, postura similar será adotada por todos os outros “seguidores” (que também concordavam com tudo o que o outro dizia, mas agora não concordam com a única declaração ou postagem divergente).
O linchamento virtual descrito acima tem uma nomenclatura bastante conhecida: cultura do cancelamento. No entanto, este tipo de atitude não surgiu com a rede mundial de computadores. É parte constitutiva da psique humana, qualificado por Freud como “narcisismo das pequenas diferenças”, ou seja, a tendência que temos em viver em rixa com quem se parece conosco. Em outros termos, como bem aponta matéria do site “Ensaios e notas”, as pessoas tendem a exibir maior sensibilidade, esnobismo e conflito em relação àqueles que têm grande semelhança social.
Nesse caso, diferentemente da música de Caetano Veloso, Narciso pode achar feio o que é (quase) espelho. Seria esse o motivo para tantas discussões no campo da esquerda, aparentemente banais, por exemplo?
Segundo Freud, grupos com fortes semelhanças e características compartilhadas são propensos a se envolver em rixas constantes e ridicularizar uns aos outros (como as acusações no campo progressista do outro ser “pequeno-burguês”, “neoliberal”, “lacaio”, “radical” ou “vendido ao sistema”). Por outro lado, tais conflitos não são direcionados para aqueles que são muito diferentes.
Lembrando o citado site “Ensaios e notas”, os conflitos decorrentes de pequenas diferenças validam a importância e o significado de cada um. Ao defender questões aparentemente cruciais contra indivíduos semelhantes, um senso de propósito é reforçado. Consequentemente, as próprias crenças e verdades comuns são validadas entre os conflituosos (também conhecidos como “canceladores”).
As picuinhas também servem para forjar alianças. O conteúdo em discórdia pode não ser lá muito importante, mas quem está do seu lado na trincheira é. Ao odiar algo ou alguém em comum, o indivíduo reforça seu sentimento de pertença. Não por acaso, o cancelamento (aparentemente) empodera tanto os indivíduos; mostra que suas opiniões (supostamente) importam. Se o youtuber, influencer ou personalidade pública apagar a postagem ou fizer uma retratação pública sobre a declaração que motivou a controvérsia, o cancelamento cumpriu sua função. Chega-se à catarse coletiva.
Agora é só deixar de “seguir” o youtuber, influencer ou personalidade pública. Se possível, levá-lo ao ostracismo. Em sequência, procura-se outro “guru”. Evidentemente, no primeiro “deslize”, ele também será cancelado e começará outro ciclo de linchamento online.
{ Observatório da Imprensa }
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