Algum tipo de cultura midiática


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“O tempo das grandes plataformas sociais como facebook, Instagram e Twitter está acabando”. Entrevista com Marta Peirano

Agora, o clima está perfeito. É uma manhã apocalíptica e se avizinha um horizonte distópico. Granulados pelos pixels da webcam e o lag do sinal do Zoom, nossos rostos se encontram e se cumprimentam com certo descompasso. Marta Peirano, ou a imagem digital de Marta Peirano, acomoda-se para explicar do que falamos quando mencionamos tecnologia e poder.

Peirano é ensaísta, jornalista, colunista do El País e autora de livros como O inimigo conhece o sistema (2019) e Contra el futuro (2022). Daqui a alguns dias, participará do Hay Festival Arequipa 2023 para falar sobre soberania tecnológica, meio ambiente, democracia e, claro, tecnologia e poder.

A entrevista é de Ezzio Ramos, publicada pelo jornal peruano La República, 05-11-2023. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

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La República: O que significa a relação entre tecnologia e poder?

Marta Peirano: Trata-se de como as tecnologias e as infraestruturas são usadas para exercer o poder sobre pequenos ou grandes grupos de pessoas. Como um marido ou uma esposa usa a tecnologia para vigiar seu parceiro e seus filhos. Ou como um governo utiliza a tecnologia para vigiar a população e para controlar um coletivo dentro da população.

Neste momento, no conflito entre Israel e Palestina, há muitos exemplos de como a tecnologia é utilizada para exercer o poder, tanto por Israel como pelo Hamas, bem como pelos Estados Unidos e os impérios midiáticos. Há muitas pessoas utilizando a tecnologia para exercer o poder de diferentes maneiras, com objetivos mais ou menos diferentes.

LR: Hoje, quais são as possibilidades dos jornalistas em cumprir o papel de informar?

MP: Trabalho há quase 30 anos e desde que comecei em meu primeiro jornal, o jornalismo está em crise. Vejo uma realidade de jornais que perderam muitos recursos, que demitiram jornalistas experientes, que contrataram muitas pessoas, talvez tenham mais habilidade para movimentar conteúdos nas redes sociais, mas menos habilidade para diferenciar uma notícia falsa de uma verdade.

Agora, estamos vendo que pessoas provenientes de outras disciplinas, como a arquitetura, o design, a arte, inclusive a música, estão utilizando tecnologias digitais para criar análises forenses completamente novas de acontecimentos, de espaços, de locais onde caiu uma bomba, para fazer uma pesquisa da realidade que leva o jornalismo muito mais longe.

Meu conselho aos “pequenos castores do jornalismo”, como eu os chamo, é para que “não fiquem olhando o Twitter na redação, olhem para as oficinas, aprendam a trabalhar com informação que vem dos satélites, para trabalhar com informação que é possível encontrar nos fóruns”.

LR: Estamos condenados a que as ferramentas digitais sejam utilizadas contra nós?

MP: Sempre que chegam novas tecnologias, há um período de adaptação em que não temos os “anticorpos” apropriados para geri-las. E isso aconteceu do telégrafo à energia atômica: há sempre um período em que acontecem um montão de coisas horríveis. Esses períodos de reajustes são necessários.

Eu vejo a questão como um videogame. Geralmente, você passa da primeira tela depois de ter morrido três ou quatro vezes, mas por coisas muito pequenas. Então, aprende a dinâmica do jogo. A partir daí, os problemas que se apresentam são cada vez maiores. As ferramentas que você aprendeu na primeira tela serão úteis para a última, mas você precisa de todas essas telas para poder lutar com verdadeira perspicácia.

LR: Uma das novas dinâmicas do jornalismo é o “fact-checking”, que busca combater a desinformação…

MP: Tenho sido crítica ao projeto de verificadores em geral, porque sinto que não cumpre o objetivo que tinha para cumprir. Não servem para deter a desinformação, ao contrário, servem para identificar padrões. Se olho para as falsidades detectadas nas eleições do Brasil, posso me preparar para as próximas eleições na Espanha porque sei que serão muito parecidas. Existe um processo de detecção de padrões que nos “inocula”. Estes são os anticorpos que precisamos para desenvolver algum tipo de cultura midiática.

LR: A desinformação nas redes sociais é o problema ou é o sintoma de algo maior?

MP: Penso que é um sintoma de um estado crítico de profunda desigualdade que anuncia um apocalipse social. Vivemos em um estado de desamparo raivoso que faz com que não nos importemos mais com a realidade. Ou seja, você transforma a realidade em uma gestora de suas emoções. Abraça uma realidade que faz com que se sinta bem porque confirma a sua raiva, porque o conecta com outras pessoas irritadas, com a sua própria raiva interior e permite manifestá-la através de políticos como Donald Trump. As notícias se tornam ferramentas de gestão emocional para pessoas furiosas, enfadadas, indefesas e assustadas.

LR: O que se espera da próxima geração que já tem as redes sociais dentro de seu chip?

MP: Historicamente, podemos esperar que a próxima geração esteja mais preparada do que nós, que entenda que este ambiente midiático está cheio de toxidez, que desenvolva o seu próprio músculo de identificação. Ou seja, que venha um pouco inoculada da base.

Preocupa-me este momento em que há modelos de inteligência artificial capazes de gerar grandes quantidades de desinformação de forma completamente gratuita, credível, gerando também imagens em vídeo. Sobretudo, preocupa-me que 99% desse conteúdo sintético seja pornografia não consentida. Na Espanha, tivemos o caso de alguns garotos que geraram pornografia não consentida de dezenas de colegas de classe. Algumas delas tinham 11 anos.

O fato de ser sintético, e de todos saberem que não está correto, não diminui a degradação. Não importa que seja mentira. Aqui, há um problema que, na realidade, não é propriamente técnico, embora se manifeste graças à tecnologia. O problema está em que estamos degradando as nossas relações sociais, as instituições, a educação, a saúde, a política, a democracia etc., de uma forma que indica que não temos consciência do quanto essa degradação é perigosa.

LR: Essa geração é também aquela que está explorando esse mau uso. São eles que terão mais “anticorpos” ou serão novos vilões mais especializados?

MP: Eu penso que a geração virá mais preparada, justamente porque os garotos que estão fazendo essas coisas estão sendo punidos. Representam o sacrifício que nos ensina que colocar o dedo no fogo é prejudicial e a próxima geração não terá mais que fazer isso.

Precisamos ensinar aos garotos que quando se deprecia uma colega de sala, isso gera um impacto, pois não sabem disso. Estão brincando com ferramentas que são grandes demais para eles, pois não entendem as consequências de seu uso, mas nós entendemos.

LR: Que futuro se espera para as redes sociais? Maior regulamentação ou uma anarquia de algoritmos?

MP: Claramente, estamos no final de um ciclo. O Google está em julgamento no Departamento de Justiça estadunidense por práticas anticoncorrenciais. A Meta está sendo julgada por promotores de 41 estados por prejudicar deliberadamente a saúde mental das crianças. Neste momento, a rede social está em julgamento. É evidente que o tempo das grandes plataformas sociais como facebook, Instagram e Twitter está acabando.

O que acontece? Chega o tempo do ChatGPT. É o capitalismo de plataformas, mas muito mais especializado: “Eu te ofereço um serviço gratuito ou muito barato para que você possa fazer algo muito legal que não conseguia fazer antes, mas fico com os seus dados, fico sabendo de tudo o que você faz e o comercializo como eu quiser”. É exatamente isto que o ChatGPT está fazendo. Ocorre que não é mais gratuito. Agora, você tem um gratuito e outro que é cobrado, e os dois ficam com os seus dados.

Todos os modelos de IA almejam se tornar a nossa interface para tudo: para lidar com os bancos, com os afazeres, ir ao médico, fazer coisas do trabalho. Almejam se tornar, como dizem em O Senhor dos Anéis, “o anel que governa tudo”. As plataformas anteriores ficavam com nossas comunicações, mas este fica com os nossos pensamentos mais íntimos. Você não precisa mais de um milhão de followers porque já tem uma voz que te entende, que te ouve, que sabe quem você é, em um momento no qual uma das consequências diretas da desigualdade e das plataformas digitais é uma epidemia de solidão.

Inicia uma era muito mais obscura em que continuará havendo uma plataforma, ou várias, que saberão tudo sobre nós, que comercializarão com essa informação de forma muito mais obscura e astuciosa, mas não teremos mais grupos grandes com os quais nos relacionamos e organizamos movimentos sociais.

LR: Quais pequenos atos de resistência nós, cidadãos comuns, podemos praticar para nos proteger?

MP: Eu sempre digo a mesma coisa: caminhe na calçada e converse com os seus vizinhos. Estamos há vinte anos submetidos a tecnologias que nos arrancam do lugar em que estamos fisicamente – onde estão a sua família, seus vizinhos, seus colegas, seu parceiro, seus filhos: essas pessoas que você deixa de prestar atenção quando pega o celular – e nos conectam com uma comunidade que parece muito mais próxima, mas que só existe na plataforma.

Penso no ato rebelde de deixar o celular e sair para conversar com os vizinhos para saber quem são e o que fazem, com a possibilidade de que sejam pessoas com idades diferentes, que têm interesses diferentes, que optam por coisas diferentes e se inteirar do porquê.

Para mim, agora, conseguir se conectar com essas vidas tão diferentes parece um ato revolucionário, porque tudo ao nosso redor está nos condicionando a fazer o contrário.

{ Instituto Humanitas Unisinos – IHU }

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